VOCÊ NÃO ESTÁ NA PÁGINA PRINCIPAL. CLIQUE AQUI PARA RETORNAR
sábado, setembro 02, 2006
Chamado Para Apóstolo - L-Jones
“...Servo de Jesus Cristo, chamado para apóstolo, separado para o evangelho...” (Romanos 1:1)
Neste texto vemos 3 declarações:
1) SERVO DE CRISTO - Paulo enfatiza a pessoa de Cristo. Jesus é o centro da vida do apóstolo e por isso ele O serve. Antes ele o perseguia quando perseguia os cristãos (“Saulo, Saulo, por que me persegues?” Atos 9:4).
Mas Paulo não apenas fala de ser servo de Jesus, mas que Jesus é o Messias, O Cristo, O Ungido de Deus para realizar a obra salvífica do seu povo. Paulo sempre fala de Jesus como aquele que padeceu na cruz; era sua pregação: Cristo crucificado! Este era o propósito de Jesus ao vir ao mundo. Mas o apóstolo sempre dizia que este Jesus Salvador era o Messias prometido, o Cristo.
Por isso Paulo afirma que Jesus Cristo é o tema da sua pregação - Cristo e este crucificado. Este é um grande ensino para nós pois o que deve caracterizar um servo do Senhor é que ele proclame Cristo crucificado. Deve ser esta a nossa prova de fé. Ele é o centro da nossa vida? O centro da nossa mensagem ao mundo? Paulo era assim. Só nos primeiros 14 versículos da Epístola aos Efésios Paulo menciona a palavra Jesus 15 vezes. Acontece isso conosco? Ou preferimos contar nossas experiências achando que com isso pregamos o evangelho? Isto não é evangelho! Evangelho é Cristo. Quanto mais crescemos na graça, menos falamos de nós e mais falamos de Jesus Cristo.
Por isso Paulo se vangloriava em ser servo de Jesus . A palavra correta no original é “escravo” (servo). O que ele está afirmando é que é “escravo de Cristo”. Quando Paulo diz em I Co 6:19-20, que somos templo do Espírito Santo conclui dizendo que não somos mais de nós mesmos porque fomos “comprados por preço”. É como se ele estivesse dizendo: “Vocês não percebem que seus corpos são templo do Espírito Santo e não são de vocês mesmos? Que não têm o direito de fazer o que bem desejarem com seus corpos pois foram comprados pelo preço do sangue de Cristo? Não percebem que foram libertos da escravidão pelo precioso sangue de Cristo? Foram livres da escravidão de satanás para servirem ao Deus vivo e verdadeiro?”. Isto é o que significa ser redimido.
Nós nascemos escravos do diabo (Ef. 2:1-3) e fomos libertos por aquele que é o único que pode nos libertar por aquele que é o caminho que pode nos libertar - Cristo e seu precioso sangue. É o que Pedro diz em I Pedro 1:18-19. Somos agora livres de Satanás e pertencemos a Cristo. Ele nos comprou, agora somos cativos dEle. Ele é nosso Senhor. Concluímos que jamais somos livres. Livres, sim, de Satanás e do pecado, mas escravos de Cristo, a Ele servimos.
Possivelmente quando Paulo disse: “Vivo, não mais eu, mas Cristo vive em mim” (Cl 2:20), estava se referindo a esta escravidão à pessoa a quem se ama e se honra. Em II Co 2:14, Paulo usa a figura dos súditos de um grande general que depois de ter feito uma grande conquista, entra triunfante na cidade em um desfile militar com as pessoas capturadas na guerra por este general que estão em volta dele.
Paulo diz que ser escravo de Cristo o constrange a pregar e o que seria dele se não pregasse o evangelho. Tudo por devoção a Cristo, porque Ele o livrou do mercado de escravos, o conquistou para Si. Agora é um escravo voluntário. Um escravo que ama seu Senhor. Este é um grande exemplo para nós. Aliás esto aconteceu conosco. Aconteceu mesmo? Você sente-se assim? Você não mais se pertence, mas pertence ao seu
Senhor?
2) “CHAMADO PARA SER APÓSTOLO”.
Temos de entender bem estas duas palavras. Isso por causa do contexto em que vivemos hoje. Há muita confusão na Igreja de hoje.
O que um apóstolo? Paulo, no sentido geral era um servo de Cristo, mas num sentido especial era um apóstolo.
Por que diz que foi “chamado” para ser apóstolo? Porque Paulo se preocupa logo no início desta Epístola em dizer que foi chamado para ser apóstolo? Bem, muitas pessoas naquela época estavam questionando Paulo como apóstolo, eram seus opositores e assim Paulo era difamado. Era considerado um falso apóstolo. Estava apenas representando. Diziam que ele nunca havia estado com Jesus. Mas Paulo diz claramente e com vigor que era tão apóstolo como os doze.
O que é um apóstolo? É um ofício muito especial e peculiar. Uma prova disto é que Jesus chamou os 12 discípulos (Mt 10) e “...deu-lhes poder sobre os espíritos imundos, para expulsarem, e para curarem toda enfermidade e todo mal”. No v.1, Mateus os chama de discípulos e no versículo 2 muda para apóstolos. Por que isso? Porque nem todo discípulo era apóstolo. Só alguns discípulos tornaram-se apóstolos.
Provamos isso ao ler Lucas 6:12-13. “...chamou a si os seus discípulos, e escolheu doze dentre eles, aos quias deu também o nome de apóstolos”. Somente doze dos discípulos foram nomeados e escolhidos.
A palavra “apóstolo” vista nos dicionários é alguém “enviado”. Às vezes este termo é usado com este significado no Novo Testamento, porém é mais que isto. O termo diz que é um enviado com uma missão a quem são dados poderes para cumpri-la. Na Bíblia, “apóstolo” é alguém escolhido e enviado a uma missão especial como representante autorizado de quem o envia.
Quais as marcas e sinais de um apóstolo?
1. Teria que ser testemunha do Senhor ressurreto.
Em Atos vemos os apóstolos reunidos no cenáculo conversando sobre quem substituiria a Judas Escariotes. No cap. 1:21-22 lemos: “É necessário pois, que, dos homens que nos acompanham todo o tempo que o Senhor Jesus andou entre nós , começando no batismo de João, até ao dia em que dentre vós foi levado às alturas, um destes se torne testemunha conosco da sua ressurreição”.
Paulo diz que viu Jesus ressurreto: “Não sou, porventura livre? Não sou apóstolo? Não vi a Jesus, Nosso Senhor?” (I Co 9:1). Era ele dizendo que vira Jesus ressurreto no caminho de Damasco e era testemunha disto.
2. O apóstolo tinha de ter um chamado especial para exercer este ofício. Ele foi chamado pelo próprio Senhor.
3. Era alguém a quem foi dada autoridade e comissão de operar milagres. Isso fica bem claro em II Co 12:12 - “Pois as credenciais do meu apostolado foram manifestados no meio de vós com toda a persistência, por sinais prodígios e poderes miraculosos”. Era como se ele dissesse: “Como vocês podem questionar meu ofício de apóstolo se as minhas credenciais foram apresentadas claramente entre vós”. Sinais, milagres e atos maravilhosos.
4. Os apóstolos tinham poder para dar e comunicar dons espirituais a outros; podiam transmitir o Espírito Santo pela imposição das mãos (Atos 8:17). Isso significava sinal de autoridade da sua comissão.
5. O apóstolo tinha autoridade para ensinar e definir a doutrina firmando as pessoas na verdade.
6. Tiveram autoridade para estabelecer a ordem nas igrejas. Nomeavam os presbíteros, decidiam questões disciplinares e questões doutrinárias ( ensino e doutrina. Falavam com autoridade do próprio Jesus: “...mas o Consolador, o Espírito Santo, a quem o Pai enviará em meu nome, esse vos ensinará todas as coisas e vos fará lembrar de tudo o que vos tenho dito”(Jo 14:26).
Tudo isso tem conseqüências importantes:
a) Falavam com autoridade vinda de Deus.
b) Eram representantes de Cristo e as pessoas os ouviam como quem falava da parte de Deus. Por isso Paulo diz aos crentes da igreja de Tessalônica: “...é que tendo vós recebido a palavra que de nós ouvistes, que é de Deus, acolhestes não como palavra de homens e, sim, como em verdade é a palavra de Deus...”(I Ts 2:13). Paulo está lembrando que eles não estavam ouvindo (lendo) palavras de homens. Deus dera autoridade para edificar não só aos crentes de Tessalônica, mas de Corinto: “...a respeito da nossa autoridade, a qual o Senhor nos conferiu para edificação...” (II Co 10:8). Ou ainda: “Portanto, escrevo estas cousas, estando ausente, para que, estando presente, não venha a usar de rigor segundo a autoridade que o Senhor me conferiu para edificação...” (II Co 13:10). Era uma autoridade excepcional que somente Deus podia dar; uma palavra inspirada, infalível.
Uma prova disso se vê quando Pedro diz: “...como igualmente o nosso amado irmão Paulo vos escreveu, segundo a sabedoria que lhe foi dada...nas quais há certas cousas difíceis de entender, que os ignorantes e instáveis deturpam, como também deturpam as demais Escrituras”... (outras Escrituras) - II Pedro 3:16. Aqui Pedro está igualando o que Paulo escreveu às demais Escrituras do VT. Pedro está dizendo que Paulo escreveu Bíblia.
As palavras escritas pelos apóstolos têm autoridade divina - Os apóstolos foram comissionados pelo Senhor Jesus Cristo e foram guiados e dirigidos pelo Espírito Santo. São palavras divinamente inspiradas. Lembremo-nos que foi Jesus que deu autoridade aos seus servos, os apóstolos, como Paulo. Se alguém disser que só crê no que Jesus disse, responda dizendo que esta afirmação é contraditória pois o próprio Jesus que deu autoridade ao Seu servo, aos apóstolos que reconheceram, como Pedro, que Paulo escrevera de forma tão inspirada como o VT.
Quando a igreja primitiva chegou a definir e determinar o Cânon do Novo Testamento, pois havia muitos escritos cristãos, o Espírito Santo levou a Igreja a decidir desta maneira: ela dizia que, se um documento que pretendesse ser um Evangelho ou Epístola, e não pudesse ser rastreado direta ou indiretamente, até as suas raízes num apóstolo, alguém com autoridade apostólica, ele não devia ser incluído. A prova era a apostolicidade, o caráter apostólico na determinação do Cânon do Novo Testamento. Por que? Porque um apóstolo é um homem dotado de autoridade única, autoridade de fazer doutrina, de fazer Bíblia. O Senhor guiou a Paulo pelo Seu Espírito Santo, o Senhor o chamou para ser apóstolo.
Por que Paulo se diz “chamado para apóstolo” e logo no início da Epístola? Sem dúvida Paulo queria deixar bem claro para os crentes de Roma que ele era verdadeiramente um apóstolo. Como seria bom que hoje, os que se dizem apóstolos mostrassem as credenciais que Paulo mostrou. Sem dúvida não teriam estas credenciais e por isso não são Apóstolos. Na carta que ele escreve à igreja da Galácia, Paulo é mais enfâtico ainda quando diz: “Paulo, apóstolo, não da parte de homens, nem por intermédio de homem algum, mas por Jesus Cristo e por Deus Pai, que o ressuscitou dentre os mortos...” (Gl. 1:1).
Paulo aqui está dizendo àqueles crentes que não pensem de forma errada que ele mesmo havia se declarado apóstolo como hoje se faz. Não! Os falsos mestres é que fazem isso. Ele diz claramente que é apóstolo, “não da parte de homens, nem por intermédio de homens, mas por Jesus Cristo e por Deus Pai”. Paulo foi “chamado”, escolhido pelo ato soberano de Jesus Cristo. Havia sido chamado da mesma forma que os doze e tinha a mesma autoridade. Paulo diz isso de si mesmo.
Há algo admirável aqui. O Senhor escolhe um homem para apóstolo, quando antes este mesmo homem tinha sido um dos seus maiores inimigos. Um homem com quem Jesus não estivera durante Seu período aqui no mundo, quando encarnado; alguém que não ouvira Seu ensino, não vira Seus milagres, que não O vira na cruz, que não estivera com os doze no cenáculo quando lhes apareceu após a ressurreição; era um blasfemador, um perseguidor do cristianismo. Como pode ser isto? Mas o Senhor se revela a Paulo e o chama, exatamente como chamou aos outros. Lemos em 1Co 15:7 - “Depois, foi visto por Tiago, mais tarde, por todos os apóstolos e, afinal, depois de todos, foi visto também por mim, como por um nascido fora de tempo”. Ele está dizendo como Jesus lhe aparecera e o comissionara para ser apóstolo, mesmo depois do Pentecoste, mesmo depois do Senhor fazer várias revelações a pessoas especialmente escolhidas. Paulo vai a Damasco “respirando ameaças e mortes” e o Senhor aparece e o comissiona dizendo: “Mas levanta-te e firma-te sobre teus pés, porque por isto te apareci, para te constituir ministro e testemunha, tanto das coisas em que me viste como daquelas pelas quais te aparecerei ainda, livrando-te do povo e dos gentios, para os quais eu te envio para lhes abrir os olhos e convertê-los das trevas para a luz e da potestade de Satanás para Deus, a fim de que recebam eles remissão de pecados e herança entre os que são santificados pela fé em mim” (Atos 26:16-18). Ele mesmo diz que não foi “desobediente à visão celestial” que teve. Um comissão de proclamar a verdade de forma autoritativa.
7. Não podemos esquecer desta outra marca do apostolado: A verdade lhe foi ensinada pessoalmente pelo Senhor. Em Gálatas 1:11-12 Paulo diz: “Faço-vos, porém, saber, irmãos, que o evangelho por mim anunciado não é segundo o homem; porque eu não o recebi, nem aprendi de homem algum, mas mediante revelação de Jesus Cristo”. Este evangelho não foi ensinado por outra pessoa,; se fosse ele não seria apóstolo. Ele ainda diz nesta epístola aos Gálatas que foi separado desde o ventre materno pela graça de Deus, quando revelou Jesus para que O pregasse entre os gentios e para isso não consultou a “carne e sangue”, nem subiu à Jerusalém para os que já eram apóstolos antes dele mas partiu para a Arábia e depois voltou para Damasco. Três anos depois vai à Jerusalém para avistar-se com Pedro (Gl.1:15-18). Ele vaia a Pedro, mas não para aprender com Pedro pois era igual aos demais apóstolos pois a verdade lhe fora dada pessoalmente por Cristo.
Por que isto é importante? Porque esta é uma credencial apostólica: “Porque eu recebi do Senhor o que também vos entreguei...” (Co.11:23). Recebe diretamente de Jesus. Ele se iguala aos demais apóstolos nisso: “Porque eu sou o menor dos apóstolos....mas pela graça de Deus sou o que sou...portanto, seja eu, ou sejam eles, assim pregamos e assim crestes” (I Co 15:9-11). Ele foi tão apóstolo como Pedro. Ao comissioná-lo o Senhor o chamou para ir aos gentios: “Dirijo-me a vós outros, que sois gentios! Visto, pois, que eu sou apóstolo dos gentios, glorifico o meu ministério” (Rm 11:13).
O que Paulo deseja, é que os crentes de Roma compreendam que ele é realmente apóstolo de fato e de direito. Por que esta ênfase? Porque muitos naquela época estavam se dizendo apóstolos. Em Apocalipse 2:2: “...puseste à prova os que a si mesmo se declaram apóstolos e não são, e os achastes mentirosos”. Isto ér muito prático pois estamos vivendo uma época em que muitos estão se dizendo apóstolos ou que são da sucessão apostólica. Isso não existe. A Igreja Católica não só afirma que o Papa é o vigário de Cristo, como também faz outra reivindicação: da sucessão apostólica. Mas não só a Igreja Católica, outros ramos ditos cristãos reivindicam esta sucessão apóstólica e isso é um grande argumento para terem bispos, terem um episcopado. É verdade que muitos que acreditam em bispos não aceitam a sucessão apostólica. Mas os Bispos da Alta Igreja Anglicana e Católicos costumam dizer que não existe igreja sem bispos, que isto é a essência da igreja.
Esta foi uma grande questão no século XVII e trouxe até divisão. Os bispos se diziam e ainda se dizem sucessores diretos dos apóstolos, mas “apóstolo’ é só aquele que viu e deu testemunho de Cristo ressurreto. A base para este pensamento não é bíblica e sim fruto da tradição. Isso é impossível. Além do mais Paulo diz que a Igreja Cristã é edificada “...sobre o fundamento dos apóstolos é profetas...” (Ef 2:20). Com certeza não continuamos a construir qualquer fundamento ou alicerce, pois é algo do começo da igreja. Esse alicerce que foi fincado sobre os apóstolos e profetas não continua sendo edificado. Desde que o Cânon se completou, não há mais necessidade de apóstolos. Não esqueçamos de que o ensino apostólico era autoritativo. Os apóstolos falavam como homens enviados por Deus de maneira tão inspirada como os profetas do Velho Testamento.
Por isso, ao termos as Escrituras do Novo testamento — O Cânon do NT — já temos todo ensino autorizado e não precisamos mais de apóstolos. Quando o Cânon não estava completo, os apóstolos e aqueles que estavam ligados a eles tinham uma função importantíssima: instruir a igreja que não tinha Bíblia completa. Uma vez completo o Cânon os apóstolos não mais existem.
Outra coisa interessante é que Paulo em I Co 1:1 diz: “Paulo, chamado pela vontade de Deus para ser apóstolo de Jesus Cristo, e o irmão Sóstenes”. Sóstenes aqui é apenas citado como irmão. Não estaria Paulo sendo muito egoísta? Por que ele não chamou “eu e Sóstenes?”. Paulo sabia que ele era apóstolo e que Sóstenes, apezar de excelente e santo homem, não era apóstolo. Por isso, a expressão; “e o irmão Sóstenes”. A mesma coisa acontece com Timóteo, quando Paulo o trata como irmão mas diz antes: “Paulo, apóstolo de Cristo Jesus, por vontade de Deus, e o irmão Timóteo” (Cl 1:1). Paulo não diz: “Timóteo é o homem que vem após mim, ele vai ser apóstolo por sucessão apostólica e assim pelos séculos afora”. Timóteo era apenas irmão e Paulo apóstolo, mas quando vemos em Fl.1:1 - “Paulo e Timóteo, servos de Cristo Jesus, a todos os santos ...”. Quando Paulo se descreve como servo, ele e Timóteo são iguais, pois os dois são servos no mesmo nível. Mas quanto ser apóstolo, há uma diferença: Paulo o é e Timóteo não.
Toda pretensão de ser apóstolo hoje vai de encontro com o ensino do Novo Testamento acerca do sentido do termo. Quando pulamos frases como esta que mostra que Paulo foi chamado para ser apóstolo como um ofício especial que não se repete, percebemos o quanto é grave negligenciar a doutrina e caímos nos argumentos falsos dos falsos mestres.
“Separado para o evangelho”
Não significa apenas que foi colocado à parte para pregar o evangelho, mas Paulo está colocando seu chamado a um nível mais alto. Ele já havia dito que Deus o chamara para ser servo, para ser apóstolo e agora para ser “separado para o evangelho”.
O que significa ser “separado”? Significa “posta à parte”. Paulo tinha sido “posto à parte” para o evangelho. O que significa isto? Bem, Paulo está lembrando que antes ele era um perseguidor de Cristo, um fariseu de fariseu. Ora a palavra “fariseu” significa “separado” e os fariseus se colocavam à parte, não queriam nem ter contato físico com ninguém para não se contaminarem, não queriam nada com publicanos e pecadores. Era como se Paulo estivesse: “antes eu me separei a mim mesmo como fariseu, mas a grande verdade sobre mim é que fui separado pelo próprio Deus para esta grande obra que tenho o privilégio de realizar, parte da qual estou realizando agora quando escrevo esta Epístola”. Paulo está dizendo que ele teve uma falsa separação e uma verdadeira separação. Uma foi feita pelo homem e a outra foi feita por Deus.
Paulo havia sido chamado, “separado” desde o ventre materno (“Quando, porém, ao que me separou antes de eu nascer e me chamou (“separou” - corrigida) pela sua graça, aprouve revelar seu Filho em mim, para que eu o pregasse entre os gentios...” (Gl 1:15-16). É isso que ele quer dizer. Que Deus o separou “para o evangelho de Deus”. Paulo foi separado desde o ventre materno para esta obra. O mesmo aconteceu com Jeremias (“Antes que eu te formasse no ventre materno, eu te conheci, e, antes que saísses da madre, te consagrei, e te constituí profeta às nações” - Jm 1:5). O mesmo nós vemos acontecer com João Batista.
Percebemos que esta separação é um grau muito maior do que um simples chamado para ser “servo” como acontece com todos os cristãos. É verdade que ele foi chamado para ser apóstolo, mas ele diz que não parou aí, Deus o “separou para para o evangelho”. Deus pré ordenou Paulo para ser um pregador do evangelho. Aqui chegamos à grandiosa doutrina da soberania de Deus. Deus na Sua soberania o escolhe como Lhe apraz para executar um plano que Ele mesmo elaborara. Não foi nada acidental que Paulo tivesse tido uma educação grega e hebraica, que tivesse adquirido a condição de cidadão do Império Romano. Tudo foi elaborado e decretado por Deus. E Deus fez isso no tempo determinado por Ele.
Podemos concluir dizendo que a mesma coisa acontece com nossa salvação. É algo maravilhoso e ao mesmo tempo humilhante. Segundo Paulo, nossa salvação foi determinada antes da fundação do mundo (Ef.1). Antes da fundação do mundo nossos nomes estavam escrito no livro da vida do Cordeiro (Ap 13:8). Isso é algo assombroso! Assim como Deus separou Paulo para ser pregador do evangelho antes dele mesmo nascer, o mesmo é verdadeiro em relação a nós Especialmente aos pregadores ainda hoje. Será que os pregadores de hoje estão advertidos quanto a isto? Será que estão exercendo esta função para a qual foram “separados”?. Será que estão cumprindo os propósitos de Deus? Será que estão se dando conta de que Deus está com Seus olhos sobre nós? Será que estamos pregando o evangelho de Cristo? “Arrependei-vos e crede no evangelho”!!
M. Lloyd-Jones
Neste texto vemos 3 declarações:
1) SERVO DE CRISTO - Paulo enfatiza a pessoa de Cristo. Jesus é o centro da vida do apóstolo e por isso ele O serve. Antes ele o perseguia quando perseguia os cristãos (“Saulo, Saulo, por que me persegues?” Atos 9:4).
Mas Paulo não apenas fala de ser servo de Jesus, mas que Jesus é o Messias, O Cristo, O Ungido de Deus para realizar a obra salvífica do seu povo. Paulo sempre fala de Jesus como aquele que padeceu na cruz; era sua pregação: Cristo crucificado! Este era o propósito de Jesus ao vir ao mundo. Mas o apóstolo sempre dizia que este Jesus Salvador era o Messias prometido, o Cristo.
Por isso Paulo afirma que Jesus Cristo é o tema da sua pregação - Cristo e este crucificado. Este é um grande ensino para nós pois o que deve caracterizar um servo do Senhor é que ele proclame Cristo crucificado. Deve ser esta a nossa prova de fé. Ele é o centro da nossa vida? O centro da nossa mensagem ao mundo? Paulo era assim. Só nos primeiros 14 versículos da Epístola aos Efésios Paulo menciona a palavra Jesus 15 vezes. Acontece isso conosco? Ou preferimos contar nossas experiências achando que com isso pregamos o evangelho? Isto não é evangelho! Evangelho é Cristo. Quanto mais crescemos na graça, menos falamos de nós e mais falamos de Jesus Cristo.
Por isso Paulo se vangloriava em ser servo de Jesus . A palavra correta no original é “escravo” (servo). O que ele está afirmando é que é “escravo de Cristo”. Quando Paulo diz em I Co 6:19-20, que somos templo do Espírito Santo conclui dizendo que não somos mais de nós mesmos porque fomos “comprados por preço”. É como se ele estivesse dizendo: “Vocês não percebem que seus corpos são templo do Espírito Santo e não são de vocês mesmos? Que não têm o direito de fazer o que bem desejarem com seus corpos pois foram comprados pelo preço do sangue de Cristo? Não percebem que foram libertos da escravidão pelo precioso sangue de Cristo? Foram livres da escravidão de satanás para servirem ao Deus vivo e verdadeiro?”. Isto é o que significa ser redimido.
Nós nascemos escravos do diabo (Ef. 2:1-3) e fomos libertos por aquele que é o único que pode nos libertar por aquele que é o caminho que pode nos libertar - Cristo e seu precioso sangue. É o que Pedro diz em I Pedro 1:18-19. Somos agora livres de Satanás e pertencemos a Cristo. Ele nos comprou, agora somos cativos dEle. Ele é nosso Senhor. Concluímos que jamais somos livres. Livres, sim, de Satanás e do pecado, mas escravos de Cristo, a Ele servimos.
Possivelmente quando Paulo disse: “Vivo, não mais eu, mas Cristo vive em mim” (Cl 2:20), estava se referindo a esta escravidão à pessoa a quem se ama e se honra. Em II Co 2:14, Paulo usa a figura dos súditos de um grande general que depois de ter feito uma grande conquista, entra triunfante na cidade em um desfile militar com as pessoas capturadas na guerra por este general que estão em volta dele.
Paulo diz que ser escravo de Cristo o constrange a pregar e o que seria dele se não pregasse o evangelho. Tudo por devoção a Cristo, porque Ele o livrou do mercado de escravos, o conquistou para Si. Agora é um escravo voluntário. Um escravo que ama seu Senhor. Este é um grande exemplo para nós. Aliás esto aconteceu conosco. Aconteceu mesmo? Você sente-se assim? Você não mais se pertence, mas pertence ao seu
Senhor?
2) “CHAMADO PARA SER APÓSTOLO”.
Temos de entender bem estas duas palavras. Isso por causa do contexto em que vivemos hoje. Há muita confusão na Igreja de hoje.
O que um apóstolo? Paulo, no sentido geral era um servo de Cristo, mas num sentido especial era um apóstolo.
Por que diz que foi “chamado” para ser apóstolo? Porque Paulo se preocupa logo no início desta Epístola em dizer que foi chamado para ser apóstolo? Bem, muitas pessoas naquela época estavam questionando Paulo como apóstolo, eram seus opositores e assim Paulo era difamado. Era considerado um falso apóstolo. Estava apenas representando. Diziam que ele nunca havia estado com Jesus. Mas Paulo diz claramente e com vigor que era tão apóstolo como os doze.
O que é um apóstolo? É um ofício muito especial e peculiar. Uma prova disto é que Jesus chamou os 12 discípulos (Mt 10) e “...deu-lhes poder sobre os espíritos imundos, para expulsarem, e para curarem toda enfermidade e todo mal”. No v.1, Mateus os chama de discípulos e no versículo 2 muda para apóstolos. Por que isso? Porque nem todo discípulo era apóstolo. Só alguns discípulos tornaram-se apóstolos.
Provamos isso ao ler Lucas 6:12-13. “...chamou a si os seus discípulos, e escolheu doze dentre eles, aos quias deu também o nome de apóstolos”. Somente doze dos discípulos foram nomeados e escolhidos.
A palavra “apóstolo” vista nos dicionários é alguém “enviado”. Às vezes este termo é usado com este significado no Novo Testamento, porém é mais que isto. O termo diz que é um enviado com uma missão a quem são dados poderes para cumpri-la. Na Bíblia, “apóstolo” é alguém escolhido e enviado a uma missão especial como representante autorizado de quem o envia.
Quais as marcas e sinais de um apóstolo?
1. Teria que ser testemunha do Senhor ressurreto.
Em Atos vemos os apóstolos reunidos no cenáculo conversando sobre quem substituiria a Judas Escariotes. No cap. 1:21-22 lemos: “É necessário pois, que, dos homens que nos acompanham todo o tempo que o Senhor Jesus andou entre nós , começando no batismo de João, até ao dia em que dentre vós foi levado às alturas, um destes se torne testemunha conosco da sua ressurreição”.
Paulo diz que viu Jesus ressurreto: “Não sou, porventura livre? Não sou apóstolo? Não vi a Jesus, Nosso Senhor?” (I Co 9:1). Era ele dizendo que vira Jesus ressurreto no caminho de Damasco e era testemunha disto.
2. O apóstolo tinha de ter um chamado especial para exercer este ofício. Ele foi chamado pelo próprio Senhor.
3. Era alguém a quem foi dada autoridade e comissão de operar milagres. Isso fica bem claro em II Co 12:12 - “Pois as credenciais do meu apostolado foram manifestados no meio de vós com toda a persistência, por sinais prodígios e poderes miraculosos”. Era como se ele dissesse: “Como vocês podem questionar meu ofício de apóstolo se as minhas credenciais foram apresentadas claramente entre vós”. Sinais, milagres e atos maravilhosos.
4. Os apóstolos tinham poder para dar e comunicar dons espirituais a outros; podiam transmitir o Espírito Santo pela imposição das mãos (Atos 8:17). Isso significava sinal de autoridade da sua comissão.
5. O apóstolo tinha autoridade para ensinar e definir a doutrina firmando as pessoas na verdade.
6. Tiveram autoridade para estabelecer a ordem nas igrejas. Nomeavam os presbíteros, decidiam questões disciplinares e questões doutrinárias ( ensino e doutrina. Falavam com autoridade do próprio Jesus: “...mas o Consolador, o Espírito Santo, a quem o Pai enviará em meu nome, esse vos ensinará todas as coisas e vos fará lembrar de tudo o que vos tenho dito”(Jo 14:26).
Tudo isso tem conseqüências importantes:
a) Falavam com autoridade vinda de Deus.
b) Eram representantes de Cristo e as pessoas os ouviam como quem falava da parte de Deus. Por isso Paulo diz aos crentes da igreja de Tessalônica: “...é que tendo vós recebido a palavra que de nós ouvistes, que é de Deus, acolhestes não como palavra de homens e, sim, como em verdade é a palavra de Deus...”(I Ts 2:13). Paulo está lembrando que eles não estavam ouvindo (lendo) palavras de homens. Deus dera autoridade para edificar não só aos crentes de Tessalônica, mas de Corinto: “...a respeito da nossa autoridade, a qual o Senhor nos conferiu para edificação...” (II Co 10:8). Ou ainda: “Portanto, escrevo estas cousas, estando ausente, para que, estando presente, não venha a usar de rigor segundo a autoridade que o Senhor me conferiu para edificação...” (II Co 13:10). Era uma autoridade excepcional que somente Deus podia dar; uma palavra inspirada, infalível.
Uma prova disso se vê quando Pedro diz: “...como igualmente o nosso amado irmão Paulo vos escreveu, segundo a sabedoria que lhe foi dada...nas quais há certas cousas difíceis de entender, que os ignorantes e instáveis deturpam, como também deturpam as demais Escrituras”... (outras Escrituras) - II Pedro 3:16. Aqui Pedro está igualando o que Paulo escreveu às demais Escrituras do VT. Pedro está dizendo que Paulo escreveu Bíblia.
As palavras escritas pelos apóstolos têm autoridade divina - Os apóstolos foram comissionados pelo Senhor Jesus Cristo e foram guiados e dirigidos pelo Espírito Santo. São palavras divinamente inspiradas. Lembremo-nos que foi Jesus que deu autoridade aos seus servos, os apóstolos, como Paulo. Se alguém disser que só crê no que Jesus disse, responda dizendo que esta afirmação é contraditória pois o próprio Jesus que deu autoridade ao Seu servo, aos apóstolos que reconheceram, como Pedro, que Paulo escrevera de forma tão inspirada como o VT.
Quando a igreja primitiva chegou a definir e determinar o Cânon do Novo Testamento, pois havia muitos escritos cristãos, o Espírito Santo levou a Igreja a decidir desta maneira: ela dizia que, se um documento que pretendesse ser um Evangelho ou Epístola, e não pudesse ser rastreado direta ou indiretamente, até as suas raízes num apóstolo, alguém com autoridade apostólica, ele não devia ser incluído. A prova era a apostolicidade, o caráter apostólico na determinação do Cânon do Novo Testamento. Por que? Porque um apóstolo é um homem dotado de autoridade única, autoridade de fazer doutrina, de fazer Bíblia. O Senhor guiou a Paulo pelo Seu Espírito Santo, o Senhor o chamou para ser apóstolo.
Por que Paulo se diz “chamado para apóstolo” e logo no início da Epístola? Sem dúvida Paulo queria deixar bem claro para os crentes de Roma que ele era verdadeiramente um apóstolo. Como seria bom que hoje, os que se dizem apóstolos mostrassem as credenciais que Paulo mostrou. Sem dúvida não teriam estas credenciais e por isso não são Apóstolos. Na carta que ele escreve à igreja da Galácia, Paulo é mais enfâtico ainda quando diz: “Paulo, apóstolo, não da parte de homens, nem por intermédio de homem algum, mas por Jesus Cristo e por Deus Pai, que o ressuscitou dentre os mortos...” (Gl. 1:1).
Paulo aqui está dizendo àqueles crentes que não pensem de forma errada que ele mesmo havia se declarado apóstolo como hoje se faz. Não! Os falsos mestres é que fazem isso. Ele diz claramente que é apóstolo, “não da parte de homens, nem por intermédio de homens, mas por Jesus Cristo e por Deus Pai”. Paulo foi “chamado”, escolhido pelo ato soberano de Jesus Cristo. Havia sido chamado da mesma forma que os doze e tinha a mesma autoridade. Paulo diz isso de si mesmo.
Há algo admirável aqui. O Senhor escolhe um homem para apóstolo, quando antes este mesmo homem tinha sido um dos seus maiores inimigos. Um homem com quem Jesus não estivera durante Seu período aqui no mundo, quando encarnado; alguém que não ouvira Seu ensino, não vira Seus milagres, que não O vira na cruz, que não estivera com os doze no cenáculo quando lhes apareceu após a ressurreição; era um blasfemador, um perseguidor do cristianismo. Como pode ser isto? Mas o Senhor se revela a Paulo e o chama, exatamente como chamou aos outros. Lemos em 1Co 15:7 - “Depois, foi visto por Tiago, mais tarde, por todos os apóstolos e, afinal, depois de todos, foi visto também por mim, como por um nascido fora de tempo”. Ele está dizendo como Jesus lhe aparecera e o comissionara para ser apóstolo, mesmo depois do Pentecoste, mesmo depois do Senhor fazer várias revelações a pessoas especialmente escolhidas. Paulo vai a Damasco “respirando ameaças e mortes” e o Senhor aparece e o comissiona dizendo: “Mas levanta-te e firma-te sobre teus pés, porque por isto te apareci, para te constituir ministro e testemunha, tanto das coisas em que me viste como daquelas pelas quais te aparecerei ainda, livrando-te do povo e dos gentios, para os quais eu te envio para lhes abrir os olhos e convertê-los das trevas para a luz e da potestade de Satanás para Deus, a fim de que recebam eles remissão de pecados e herança entre os que são santificados pela fé em mim” (Atos 26:16-18). Ele mesmo diz que não foi “desobediente à visão celestial” que teve. Um comissão de proclamar a verdade de forma autoritativa.
7. Não podemos esquecer desta outra marca do apostolado: A verdade lhe foi ensinada pessoalmente pelo Senhor. Em Gálatas 1:11-12 Paulo diz: “Faço-vos, porém, saber, irmãos, que o evangelho por mim anunciado não é segundo o homem; porque eu não o recebi, nem aprendi de homem algum, mas mediante revelação de Jesus Cristo”. Este evangelho não foi ensinado por outra pessoa,; se fosse ele não seria apóstolo. Ele ainda diz nesta epístola aos Gálatas que foi separado desde o ventre materno pela graça de Deus, quando revelou Jesus para que O pregasse entre os gentios e para isso não consultou a “carne e sangue”, nem subiu à Jerusalém para os que já eram apóstolos antes dele mas partiu para a Arábia e depois voltou para Damasco. Três anos depois vai à Jerusalém para avistar-se com Pedro (Gl.1:15-18). Ele vaia a Pedro, mas não para aprender com Pedro pois era igual aos demais apóstolos pois a verdade lhe fora dada pessoalmente por Cristo.
Por que isto é importante? Porque esta é uma credencial apostólica: “Porque eu recebi do Senhor o que também vos entreguei...” (Co.11:23). Recebe diretamente de Jesus. Ele se iguala aos demais apóstolos nisso: “Porque eu sou o menor dos apóstolos....mas pela graça de Deus sou o que sou...portanto, seja eu, ou sejam eles, assim pregamos e assim crestes” (I Co 15:9-11). Ele foi tão apóstolo como Pedro. Ao comissioná-lo o Senhor o chamou para ir aos gentios: “Dirijo-me a vós outros, que sois gentios! Visto, pois, que eu sou apóstolo dos gentios, glorifico o meu ministério” (Rm 11:13).
O que Paulo deseja, é que os crentes de Roma compreendam que ele é realmente apóstolo de fato e de direito. Por que esta ênfase? Porque muitos naquela época estavam se dizendo apóstolos. Em Apocalipse 2:2: “...puseste à prova os que a si mesmo se declaram apóstolos e não são, e os achastes mentirosos”. Isto ér muito prático pois estamos vivendo uma época em que muitos estão se dizendo apóstolos ou que são da sucessão apostólica. Isso não existe. A Igreja Católica não só afirma que o Papa é o vigário de Cristo, como também faz outra reivindicação: da sucessão apostólica. Mas não só a Igreja Católica, outros ramos ditos cristãos reivindicam esta sucessão apóstólica e isso é um grande argumento para terem bispos, terem um episcopado. É verdade que muitos que acreditam em bispos não aceitam a sucessão apostólica. Mas os Bispos da Alta Igreja Anglicana e Católicos costumam dizer que não existe igreja sem bispos, que isto é a essência da igreja.
Esta foi uma grande questão no século XVII e trouxe até divisão. Os bispos se diziam e ainda se dizem sucessores diretos dos apóstolos, mas “apóstolo’ é só aquele que viu e deu testemunho de Cristo ressurreto. A base para este pensamento não é bíblica e sim fruto da tradição. Isso é impossível. Além do mais Paulo diz que a Igreja Cristã é edificada “...sobre o fundamento dos apóstolos é profetas...” (Ef 2:20). Com certeza não continuamos a construir qualquer fundamento ou alicerce, pois é algo do começo da igreja. Esse alicerce que foi fincado sobre os apóstolos e profetas não continua sendo edificado. Desde que o Cânon se completou, não há mais necessidade de apóstolos. Não esqueçamos de que o ensino apostólico era autoritativo. Os apóstolos falavam como homens enviados por Deus de maneira tão inspirada como os profetas do Velho Testamento.
Por isso, ao termos as Escrituras do Novo testamento — O Cânon do NT — já temos todo ensino autorizado e não precisamos mais de apóstolos. Quando o Cânon não estava completo, os apóstolos e aqueles que estavam ligados a eles tinham uma função importantíssima: instruir a igreja que não tinha Bíblia completa. Uma vez completo o Cânon os apóstolos não mais existem.
Outra coisa interessante é que Paulo em I Co 1:1 diz: “Paulo, chamado pela vontade de Deus para ser apóstolo de Jesus Cristo, e o irmão Sóstenes”. Sóstenes aqui é apenas citado como irmão. Não estaria Paulo sendo muito egoísta? Por que ele não chamou “eu e Sóstenes?”. Paulo sabia que ele era apóstolo e que Sóstenes, apezar de excelente e santo homem, não era apóstolo. Por isso, a expressão; “e o irmão Sóstenes”. A mesma coisa acontece com Timóteo, quando Paulo o trata como irmão mas diz antes: “Paulo, apóstolo de Cristo Jesus, por vontade de Deus, e o irmão Timóteo” (Cl 1:1). Paulo não diz: “Timóteo é o homem que vem após mim, ele vai ser apóstolo por sucessão apostólica e assim pelos séculos afora”. Timóteo era apenas irmão e Paulo apóstolo, mas quando vemos em Fl.1:1 - “Paulo e Timóteo, servos de Cristo Jesus, a todos os santos ...”. Quando Paulo se descreve como servo, ele e Timóteo são iguais, pois os dois são servos no mesmo nível. Mas quanto ser apóstolo, há uma diferença: Paulo o é e Timóteo não.
Toda pretensão de ser apóstolo hoje vai de encontro com o ensino do Novo Testamento acerca do sentido do termo. Quando pulamos frases como esta que mostra que Paulo foi chamado para ser apóstolo como um ofício especial que não se repete, percebemos o quanto é grave negligenciar a doutrina e caímos nos argumentos falsos dos falsos mestres.
“Separado para o evangelho”
Não significa apenas que foi colocado à parte para pregar o evangelho, mas Paulo está colocando seu chamado a um nível mais alto. Ele já havia dito que Deus o chamara para ser servo, para ser apóstolo e agora para ser “separado para o evangelho”.
O que significa ser “separado”? Significa “posta à parte”. Paulo tinha sido “posto à parte” para o evangelho. O que significa isto? Bem, Paulo está lembrando que antes ele era um perseguidor de Cristo, um fariseu de fariseu. Ora a palavra “fariseu” significa “separado” e os fariseus se colocavam à parte, não queriam nem ter contato físico com ninguém para não se contaminarem, não queriam nada com publicanos e pecadores. Era como se Paulo estivesse: “antes eu me separei a mim mesmo como fariseu, mas a grande verdade sobre mim é que fui separado pelo próprio Deus para esta grande obra que tenho o privilégio de realizar, parte da qual estou realizando agora quando escrevo esta Epístola”. Paulo está dizendo que ele teve uma falsa separação e uma verdadeira separação. Uma foi feita pelo homem e a outra foi feita por Deus.
Paulo havia sido chamado, “separado” desde o ventre materno (“Quando, porém, ao que me separou antes de eu nascer e me chamou (“separou” - corrigida) pela sua graça, aprouve revelar seu Filho em mim, para que eu o pregasse entre os gentios...” (Gl 1:15-16). É isso que ele quer dizer. Que Deus o separou “para o evangelho de Deus”. Paulo foi separado desde o ventre materno para esta obra. O mesmo aconteceu com Jeremias (“Antes que eu te formasse no ventre materno, eu te conheci, e, antes que saísses da madre, te consagrei, e te constituí profeta às nações” - Jm 1:5). O mesmo nós vemos acontecer com João Batista.
Percebemos que esta separação é um grau muito maior do que um simples chamado para ser “servo” como acontece com todos os cristãos. É verdade que ele foi chamado para ser apóstolo, mas ele diz que não parou aí, Deus o “separou para para o evangelho”. Deus pré ordenou Paulo para ser um pregador do evangelho. Aqui chegamos à grandiosa doutrina da soberania de Deus. Deus na Sua soberania o escolhe como Lhe apraz para executar um plano que Ele mesmo elaborara. Não foi nada acidental que Paulo tivesse tido uma educação grega e hebraica, que tivesse adquirido a condição de cidadão do Império Romano. Tudo foi elaborado e decretado por Deus. E Deus fez isso no tempo determinado por Ele.
Podemos concluir dizendo que a mesma coisa acontece com nossa salvação. É algo maravilhoso e ao mesmo tempo humilhante. Segundo Paulo, nossa salvação foi determinada antes da fundação do mundo (Ef.1). Antes da fundação do mundo nossos nomes estavam escrito no livro da vida do Cordeiro (Ap 13:8). Isso é algo assombroso! Assim como Deus separou Paulo para ser pregador do evangelho antes dele mesmo nascer, o mesmo é verdadeiro em relação a nós Especialmente aos pregadores ainda hoje. Será que os pregadores de hoje estão advertidos quanto a isto? Será que estão exercendo esta função para a qual foram “separados”?. Será que estão cumprindo os propósitos de Deus? Será que estão se dando conta de que Deus está com Seus olhos sobre nós? Será que estamos pregando o evangelho de Cristo? “Arrependei-vos e crede no evangelho”!!
M. Lloyd-Jones
terça-feira, julho 25, 2006
Paulo, uma Introdução
"Tendo em mente o comentario de T. R. Glover sobre a condenação do Apóstolo aos gentios por um Imperador Romano - Que viria o dia em que as pessoas chamariam seus cachorros de Nero e seus filhos de Paulo"
Paulo, o Escritor de Cartas
De todos os escritores do Novo Testamento, Paulo é o que gravou sua própria personalidade de modo mais inconfundível em seus escritos. É especialmente por esta razão que ele tem assegurado um lugar entre os grandes escritores de cartas da literatura mundial – não por ter composto suas cartas com um olho na propriedade estilística e no veredicto de aprovação de um público mais amplo do que o que tinha primeiramente em vista, mas porque elas expressam, de modo tão espontâneo e por isso eloqüente, seu pensamento e sua mensagem. “Ele, certamente, é uma das grandes figuras da literatura grega”, disse Gilbert Murray; e um helenista ainda maior do que Murray, Ulrich Von Wilamowitz-Moellendorff o descreveu como “um clássico do helenismo”. Paulo, disse ele, não adotou diretamente nenhum dos elementos da educação grega, mas não apenas escreve em grego mas pensa em grego; sem percebê-lo, ele serve como executor do testamento de Alexandre, o Grande, levando o evangelho aos gregos:
“Finalmente, finalmente alguém fala novamente em grego de uma experiência de vida interior nova. Essa experiência é sua fé que lhe dá certeza da sua esperança. Seu amor radiante abrange toda a raça humana; para lhe trazer salvação ele, alegremente, sacrifica a própria vida, porém a vida nova na alma brota em todo lugar aonde ele vai. Este estilo epistolar é Paulo, o próprio Paulo e nenhum outro”.
Não é um elogio pequeno de um helenista para helenista para alguém que dizia ser hebreu de hebreu!
As cartas de Paulo são nossa principal fonte de informações sobre sua vida e obra; elas são, na verdade, nossa principal fonte de conhecimento dos começos do cristianismo, porque são os documentos cristãos datáveis mais antigos, sendo que as mais importantes foram escritas entre dezoito e trinta anos após a morte de Jesus. Alguns escritores certamente usaram a forma de letra para disfarçar seus verdadeiros pensamentos. A honestidade transparente de Paulo era incompatível com qualquer artificialidade destas. Ele tenta, onde é necessário, ser diplomático, ou escrevendo a seus próprios convertidos ou a pessoas que pessoalmente lhe são desconhecidas; porém, mesmo assim, ele deixa bem claro quais sãos seus propósitos.
Esta espontaneidade foi, sem dúvida, facilitada pelo hábito de Paulo de ditar suas cartas, em vez de escrevê-las ele mesmo. Enquanto dita, ele vê com os olhos da mente aqueles a quem está se dirigindo, e fala como se estivesse face a face com eles. Mesmo recorrendo a amanuenses, o estilo é o dele, especialmente nas “epístolas maiúsculas” (designação usada convenientemente para as cartas aos Gálatas, Coríntios e Romanos). Quando o amanuense era um dos seus companheiros mais próximos, como Timóteo ou Lucas, ele pode ter tido uma liberdade de estilo maior. Mas quando Paulo se empolgava com seu assunto, pode não ter sido fácil para ninguém escrever ao seu ditado. Se seu amanuense seguia o procedimento normal, deve ter redigido o que Paulo ditava com um buril, em tabletes de cera, possivelmente usando algum sistema de abreviaturas, para depois transcrever o texto por extenso em uma folha ou rolo de papiro.
Devido à espontaneidade evidente das cartas de Paulo, qualquer história dele que seja irreconciliável com as evidências contidas nelas, tem de ser suspeita. Do primeiro século temos uma história de Paulo, composta (ao que parece) de modo totalmente independente das suas cartas. Trata-se da narrativa contida nos Atos dos Apóstolos (uma obra escrita como segunda parte de uma história das origens do cristianismo, cuja primeira parte conhecemos como o evangelho de Lucas). Esta é nossa principal fonte secundária da vida e obra de Paulo, e a presente obra se baseia na convicção (da qual os argumento foram expostos em outro lugar) de que se trata de uma fonte de elevado valor histórico. As diferenças entre o retrato de Paulo traçado em suas cartas inquestionadas, e o que foi traçado em Atos são as que se pode esperar entre o auto-retrato de alguém e o retrato pintado dele por algum outro, para quem posou conscientemente ou (como neste caso) inconscientemente. O Paulo de Atos é o Paulo histórico como foi visto e descrito por um observador simpatizante e acurado, mas independente, cuja narrativa fornece um pano de fundo convincente, pelo menos para as principais cartas, e pode ser usada com confiança para suplementar as informações do próprio Paulo.
Paulo e a Expansão do Cristianismo
Todavia, não é como um homem de letras, mas talvez mais como um homem de ação que Paulo deixou sua marca na história mundial. Veja, por exemplo, os dois fenômenos históricos abaixo, que seriam surpreendentes, se já não nos fossem tão familiares.
Em primeiro lugar, o cristianismo surgiu como movimento dentro da comunidade judaica, não nas terras da dispersão, mas na terra de Israel. Seu fundador foi um judeu, assim como seus discípulos, que, nos anos que seguiram à partida dele, proclamaram apenas a judeus as boas novas que ele lhes confiou. Contudo, em pouco mais de uma geração após a sua morte, o cristianismo foi reconhecido pelas autoridades do Império Romano como uma religião predominantemente gentia, e até hoje há regiões do mundo, onde a antítese judeu/cristão é apenas outra maneira de colocar a antítese judeu/gentio.
Em segundo lugar, o cristianismo surgiu no sudoeste da Ásia, entre pessoas cuja língua comum era aramaico. Seus documentos fundamentais, no entanto, foram escritos em grego, e assim chegaram até nós; e por muitos séculos, agora, tem sido considerada, para o bem ou para o mal, uma religião predominantemente européia.
Estes dois fenômenos que, na verdade, são dois aspectos da mesma coisa, são resultado, principalmente, da energia com que Paulo, um judeu de nascimento e formação, espalhou o evangelho de Cristo no mundo gentio, da Síria até a Itália e talvez até a Espanha, durante os mais ou menos trinta anos que seguiram sua conversão ao cristianismo, por volta do ano 33 d.C. A energia com que ele abraçou e realizou sua missão, pode ser ilustrada por uma fase do seu ministério apostólico: a década entre 47 e 57 d.C. Eis o resumo de Roland Allen:
“Em pouco mais de dez anos, Paulo plantou a igreja em quatro províncias do Império: Galácia, Macedônia, Acaia e Ásia. Antes de 47 não havia igrejas nestas províncias; no ano 57 Paulo podia dizer que seu trabalho estava feito, e planejar investidas longas no extremo oeste, sem ficar preocupado com que as igrejas que tinha fundado, pereceriam em sua ausência, por falta de orientação e apoio.”
Sua confiança era justificada: elas não pereceram, antes cresceram e prosperaram.
Paulo não foi o único pregador do cristianismo no mundo gentio da época – havia outros que pregavam e eram simpáticos a ele, e alguns que rivalizavam com ele – mas ele superou todos como missionário pioneiro e plantador de igrejas, e nada pode tirar dele o título de aposto aos gentios par exellence.
Paulo, Pregador da Graça Livre e Gratuita
A contribuição mais destacada de Paulo ao mundo, porém, foi sua apresentação das boas novas da graça gratuita – como ele mesmo teria dito (corretamente), sua re-apresentação das boas novas explícitas no ensino de Jesus e corporificadas em sua vida e obra. A graça de Deus que Paulo proclamou é livre e gratuita em mais de um sentido: livre, no sentido em que é soberana e desimpedida; gratuita, no sentido de que é oferecida às pessoas, para ser aceita apenas pela fé, e livre no sentido de que é fonte e princípio de libertação delas de todo tipo de servidão interior e espiritual, incluindo a servidão do legalismo e a servidão da anarquia moral.
O Deus cuja graça Paulo proclamou, é o único que faz milagres. Ele cria o universo do nada; chama mortos de volta à vida; justifica o ímpio. Este terceiro é o maior milagre de todos: criação e ressurreição correspondem ao poder do Deus vivo e vivificador, mas a justificação do ímpio é, à primeira vista, uma contradição do caráter justo de Deus, o juiz de toda a terra, que, em suas próprias palavras, “não justificarei o ímpio” (Ex 23.7). Porém a qualidade da graça divina é tal que, no próprio gesto de estendê-la aos que não a merecem, Deus demonstra que Ele mesmo é “justo e o justificador daquele que tem fé em Jesus” (Rm 3.26).
O conceito que Paulo tem de Deus, está completamente alinhado com o ensino de Jesus. O Deus que, em parábola após parábola, perdoa gratuitamente o pecador ou recebe o pródigo que retorna, não exerce a qualidade da misericórdia à custa da sua justiça: ele continua sendo o Deus coerente do qual a própria coerência é a razão de pecadores “não serem consumidos” (Ml 3.6); ou aquele que, nas palavras de outro profeta do Antigo Testamento, “não retém a sua ira par sempre, porque tem prazer na misericórdia” (Mq 7.18).
A graça, porém, se manifesta não apenas na aceitação dos pecadores por Deus, mas também na transformação dos que são assim aceitos, para serem semelhantes a Cristo. As palavras de Thomas Erskine têm sido citadas com freqüência, pois, “no Novo Testamento, religião é graça, e ética é gratidão”. Se esta frase for traduzida para o grego, uma palavra, charis, serve de equivalente tanto para “graça” quanto para “gratidão”; isto porque a gratidão que a graça divina gera em seu destinatário, também é expressão desta graça concedida e mantida pelo Espírito Santo, por meio do qual o amor de Deus é derramado no coração dos crentes. Jesus tinha citado os dois mandamentos, de amar a Deus e ao próximo, como aqueles dos quais “dependem toda a Lei e os Profetas” (Mt 22.40); por isso, para Paulo, a ação livre deste amor divino na vida dos que foram redimidos pela graça, consiste “no cumprimento da lei” (Rm 13.10). Por esta razão, insiste ele, o evangelho da graça gratuita não anula a essência da lei de Deus, antes a confirma (Rm 3.31).
O amor é um incentivo para fazer a vontade de Deus mais forte do que regulamentos legais e medo da condenação jamais poderiam ser. Isto pelo menos foi compreendido por Márcion, um estranho cristão do segundo século cuja devoção ao ensino de Paulo não acompanhou sua compreensão dele. Márciom cortou o evangelho do seu passado e do seu futuro, negando a relevância do Antigo Testamento e do julgamento futuro para o cristianismo. Paulo, por sua vez, não jogou fora o Antigo Testamento (como o chamamos); para ele, tratava-se das Sagradas Escrituras (Rm 3.21) e de “oráculos de Deus” (Rm 3.2). Elas tinham o seu cumprimento e o seu significado, um “véu está posto sobre o coração deles” (2 Co 3.15). Paulo lhes deu o valor maior, porque elas davam testemunho da mensagem da justificação pela fé em Cristo: o evangelho que nelas foi “prenunciado a Abraão" (Gl 3.8) era o mesmo que Paulo estava encarregado de proclamar; não era uma invenção nova.
Paulo também não repudiou a idéia do julgamento futuro. Num universo moral, é preciso contar com a retribuição divina; “do contrário, como julgará Deus o mundo?” (Rm 3.6). Márciom, no entanto, foi radical fora da realidade, e Paulo não. Que lhe seja considerada a justiça de ter entendido a mensagem de Paulo da salvação pela graça – mais do que muitos cristãos “ortodoxos” deste século.
Tertuliano, por exemplo, ao escrever seu tratado Contra Márciom depois da morte deste, desafiou-o dramaticamente a dizer por que não se entregou às extravagâncias do pecado, já que não acreditava que o Deus Pai, que Jesus revelara, julgaria a raça humana. “Sua única resposta”, diz Tertuliano, imitando Márciom, é “absit, absit” (“longe disto, longe disto”) – e sobre uma resposta destas ele despeja sua zombaria. Mas exatamente neste ponto Tertuliano mostra que é ele e não Márcion quem está fora de sintonia com Paulo. O latim absit que Tertuliano põe na boca de Márciom parece ser o equivalente do grego me genoito, que provavelmente foi o que Márciom, cuja língua era grego, usou.
Mas se Márciom rejeitou um desafio como o de Tertuliano com me genoito, ele estava usando estas palavras exatamente no mesmo sentido em que Paulo as usou, ao responder a pergunta: “E daí? Havemos de pecar porque não estamos debaixo da lei, e sim da graça? De modo nenhum!” (Rm 6.15). Márciom, como Paulo, entendeu que continuar no pecado depois de receber pela fé a nova vida (que era nada menos que a vida de Cristo ressurreto compartilhada pelo crente) era uma contradição em termos; “Como viveremos ainda no pecado, nós os que para ele morremos?” (Rm 6.2). Paulo, diferente de Márciom, sabia que um dia teria de prestar contas da sua administração ao Senhor que o empregara; mas não era a perspectiva de comparecer perante o tribunal de Cristo o que o afastava do pecado. Ele, que antes seguira o padrão de justiça prescrito pelos mandamentos mosaicos, não podia contentar-se com um padrão inferior, agora que estava “debaixo da lei de Cristo” (1 Co 9.21). Antes, como não era mais ele quem vivia, mas Cristo quem vivia nele, a perfeição de Cristo era o alvo em direção ao qual ele agora corria. Tertuliano pode ter sabido disto; talvez estivesse simplesmente tentando marcar um ponto no debate com Márciom. Mesmo assim, estava pedindo a resposta: “E será que você tem como única razão para abster-se do pecado o medo da ira vindoura?”.
Márciom, provavelmente, e Paulo, com certeza, conhecia o amor de Cristo como única força propulsora em sua vida. Onde o amor é a força propulsora, não há nenhuma sensação de pressão, conflito ou imposição para fazer o que é certo; a pessoa que é impelida pelo amor de Jesus e capacitada pelo seu Espírito, faz a vontade de Deus, de coração. Porque (como Paulo podia dizer de experiência), “onde está o Espírito do Senhor, aí há liberdade” (2 Co 3.17).
O próximo artigo desta série é O CRESCIMENTO DE ROMA. Em breve.
Paulo, o Escritor de Cartas
De todos os escritores do Novo Testamento, Paulo é o que gravou sua própria personalidade de modo mais inconfundível em seus escritos. É especialmente por esta razão que ele tem assegurado um lugar entre os grandes escritores de cartas da literatura mundial – não por ter composto suas cartas com um olho na propriedade estilística e no veredicto de aprovação de um público mais amplo do que o que tinha primeiramente em vista, mas porque elas expressam, de modo tão espontâneo e por isso eloqüente, seu pensamento e sua mensagem. “Ele, certamente, é uma das grandes figuras da literatura grega”, disse Gilbert Murray; e um helenista ainda maior do que Murray, Ulrich Von Wilamowitz-Moellendorff o descreveu como “um clássico do helenismo”. Paulo, disse ele, não adotou diretamente nenhum dos elementos da educação grega, mas não apenas escreve em grego mas pensa em grego; sem percebê-lo, ele serve como executor do testamento de Alexandre, o Grande, levando o evangelho aos gregos:
“Finalmente, finalmente alguém fala novamente em grego de uma experiência de vida interior nova. Essa experiência é sua fé que lhe dá certeza da sua esperança. Seu amor radiante abrange toda a raça humana; para lhe trazer salvação ele, alegremente, sacrifica a própria vida, porém a vida nova na alma brota em todo lugar aonde ele vai. Este estilo epistolar é Paulo, o próprio Paulo e nenhum outro”.
Não é um elogio pequeno de um helenista para helenista para alguém que dizia ser hebreu de hebreu!
As cartas de Paulo são nossa principal fonte de informações sobre sua vida e obra; elas são, na verdade, nossa principal fonte de conhecimento dos começos do cristianismo, porque são os documentos cristãos datáveis mais antigos, sendo que as mais importantes foram escritas entre dezoito e trinta anos após a morte de Jesus. Alguns escritores certamente usaram a forma de letra para disfarçar seus verdadeiros pensamentos. A honestidade transparente de Paulo era incompatível com qualquer artificialidade destas. Ele tenta, onde é necessário, ser diplomático, ou escrevendo a seus próprios convertidos ou a pessoas que pessoalmente lhe são desconhecidas; porém, mesmo assim, ele deixa bem claro quais sãos seus propósitos.
Esta espontaneidade foi, sem dúvida, facilitada pelo hábito de Paulo de ditar suas cartas, em vez de escrevê-las ele mesmo. Enquanto dita, ele vê com os olhos da mente aqueles a quem está se dirigindo, e fala como se estivesse face a face com eles. Mesmo recorrendo a amanuenses, o estilo é o dele, especialmente nas “epístolas maiúsculas” (designação usada convenientemente para as cartas aos Gálatas, Coríntios e Romanos). Quando o amanuense era um dos seus companheiros mais próximos, como Timóteo ou Lucas, ele pode ter tido uma liberdade de estilo maior. Mas quando Paulo se empolgava com seu assunto, pode não ter sido fácil para ninguém escrever ao seu ditado. Se seu amanuense seguia o procedimento normal, deve ter redigido o que Paulo ditava com um buril, em tabletes de cera, possivelmente usando algum sistema de abreviaturas, para depois transcrever o texto por extenso em uma folha ou rolo de papiro.
Devido à espontaneidade evidente das cartas de Paulo, qualquer história dele que seja irreconciliável com as evidências contidas nelas, tem de ser suspeita. Do primeiro século temos uma história de Paulo, composta (ao que parece) de modo totalmente independente das suas cartas. Trata-se da narrativa contida nos Atos dos Apóstolos (uma obra escrita como segunda parte de uma história das origens do cristianismo, cuja primeira parte conhecemos como o evangelho de Lucas). Esta é nossa principal fonte secundária da vida e obra de Paulo, e a presente obra se baseia na convicção (da qual os argumento foram expostos em outro lugar) de que se trata de uma fonte de elevado valor histórico. As diferenças entre o retrato de Paulo traçado em suas cartas inquestionadas, e o que foi traçado em Atos são as que se pode esperar entre o auto-retrato de alguém e o retrato pintado dele por algum outro, para quem posou conscientemente ou (como neste caso) inconscientemente. O Paulo de Atos é o Paulo histórico como foi visto e descrito por um observador simpatizante e acurado, mas independente, cuja narrativa fornece um pano de fundo convincente, pelo menos para as principais cartas, e pode ser usada com confiança para suplementar as informações do próprio Paulo.
Paulo e a Expansão do Cristianismo
Todavia, não é como um homem de letras, mas talvez mais como um homem de ação que Paulo deixou sua marca na história mundial. Veja, por exemplo, os dois fenômenos históricos abaixo, que seriam surpreendentes, se já não nos fossem tão familiares.
Em primeiro lugar, o cristianismo surgiu como movimento dentro da comunidade judaica, não nas terras da dispersão, mas na terra de Israel. Seu fundador foi um judeu, assim como seus discípulos, que, nos anos que seguiram à partida dele, proclamaram apenas a judeus as boas novas que ele lhes confiou. Contudo, em pouco mais de uma geração após a sua morte, o cristianismo foi reconhecido pelas autoridades do Império Romano como uma religião predominantemente gentia, e até hoje há regiões do mundo, onde a antítese judeu/cristão é apenas outra maneira de colocar a antítese judeu/gentio.
Em segundo lugar, o cristianismo surgiu no sudoeste da Ásia, entre pessoas cuja língua comum era aramaico. Seus documentos fundamentais, no entanto, foram escritos em grego, e assim chegaram até nós; e por muitos séculos, agora, tem sido considerada, para o bem ou para o mal, uma religião predominantemente européia.
Estes dois fenômenos que, na verdade, são dois aspectos da mesma coisa, são resultado, principalmente, da energia com que Paulo, um judeu de nascimento e formação, espalhou o evangelho de Cristo no mundo gentio, da Síria até a Itália e talvez até a Espanha, durante os mais ou menos trinta anos que seguiram sua conversão ao cristianismo, por volta do ano 33 d.C. A energia com que ele abraçou e realizou sua missão, pode ser ilustrada por uma fase do seu ministério apostólico: a década entre 47 e 57 d.C. Eis o resumo de Roland Allen:
“Em pouco mais de dez anos, Paulo plantou a igreja em quatro províncias do Império: Galácia, Macedônia, Acaia e Ásia. Antes de 47 não havia igrejas nestas províncias; no ano 57 Paulo podia dizer que seu trabalho estava feito, e planejar investidas longas no extremo oeste, sem ficar preocupado com que as igrejas que tinha fundado, pereceriam em sua ausência, por falta de orientação e apoio.”
Sua confiança era justificada: elas não pereceram, antes cresceram e prosperaram.
Paulo não foi o único pregador do cristianismo no mundo gentio da época – havia outros que pregavam e eram simpáticos a ele, e alguns que rivalizavam com ele – mas ele superou todos como missionário pioneiro e plantador de igrejas, e nada pode tirar dele o título de aposto aos gentios par exellence.
Paulo, Pregador da Graça Livre e Gratuita
A contribuição mais destacada de Paulo ao mundo, porém, foi sua apresentação das boas novas da graça gratuita – como ele mesmo teria dito (corretamente), sua re-apresentação das boas novas explícitas no ensino de Jesus e corporificadas em sua vida e obra. A graça de Deus que Paulo proclamou é livre e gratuita em mais de um sentido: livre, no sentido em que é soberana e desimpedida; gratuita, no sentido de que é oferecida às pessoas, para ser aceita apenas pela fé, e livre no sentido de que é fonte e princípio de libertação delas de todo tipo de servidão interior e espiritual, incluindo a servidão do legalismo e a servidão da anarquia moral.
O Deus cuja graça Paulo proclamou, é o único que faz milagres. Ele cria o universo do nada; chama mortos de volta à vida; justifica o ímpio. Este terceiro é o maior milagre de todos: criação e ressurreição correspondem ao poder do Deus vivo e vivificador, mas a justificação do ímpio é, à primeira vista, uma contradição do caráter justo de Deus, o juiz de toda a terra, que, em suas próprias palavras, “não justificarei o ímpio” (Ex 23.7). Porém a qualidade da graça divina é tal que, no próprio gesto de estendê-la aos que não a merecem, Deus demonstra que Ele mesmo é “justo e o justificador daquele que tem fé em Jesus” (Rm 3.26).
O conceito que Paulo tem de Deus, está completamente alinhado com o ensino de Jesus. O Deus que, em parábola após parábola, perdoa gratuitamente o pecador ou recebe o pródigo que retorna, não exerce a qualidade da misericórdia à custa da sua justiça: ele continua sendo o Deus coerente do qual a própria coerência é a razão de pecadores “não serem consumidos” (Ml 3.6); ou aquele que, nas palavras de outro profeta do Antigo Testamento, “não retém a sua ira par sempre, porque tem prazer na misericórdia” (Mq 7.18).
A graça, porém, se manifesta não apenas na aceitação dos pecadores por Deus, mas também na transformação dos que são assim aceitos, para serem semelhantes a Cristo. As palavras de Thomas Erskine têm sido citadas com freqüência, pois, “no Novo Testamento, religião é graça, e ética é gratidão”. Se esta frase for traduzida para o grego, uma palavra, charis, serve de equivalente tanto para “graça” quanto para “gratidão”; isto porque a gratidão que a graça divina gera em seu destinatário, também é expressão desta graça concedida e mantida pelo Espírito Santo, por meio do qual o amor de Deus é derramado no coração dos crentes. Jesus tinha citado os dois mandamentos, de amar a Deus e ao próximo, como aqueles dos quais “dependem toda a Lei e os Profetas” (Mt 22.40); por isso, para Paulo, a ação livre deste amor divino na vida dos que foram redimidos pela graça, consiste “no cumprimento da lei” (Rm 13.10). Por esta razão, insiste ele, o evangelho da graça gratuita não anula a essência da lei de Deus, antes a confirma (Rm 3.31).
O amor é um incentivo para fazer a vontade de Deus mais forte do que regulamentos legais e medo da condenação jamais poderiam ser. Isto pelo menos foi compreendido por Márcion, um estranho cristão do segundo século cuja devoção ao ensino de Paulo não acompanhou sua compreensão dele. Márciom cortou o evangelho do seu passado e do seu futuro, negando a relevância do Antigo Testamento e do julgamento futuro para o cristianismo. Paulo, por sua vez, não jogou fora o Antigo Testamento (como o chamamos); para ele, tratava-se das Sagradas Escrituras (Rm 3.21) e de “oráculos de Deus” (Rm 3.2). Elas tinham o seu cumprimento e o seu significado, um “véu está posto sobre o coração deles” (2 Co 3.15). Paulo lhes deu o valor maior, porque elas davam testemunho da mensagem da justificação pela fé em Cristo: o evangelho que nelas foi “prenunciado a Abraão" (Gl 3.8) era o mesmo que Paulo estava encarregado de proclamar; não era uma invenção nova.
Paulo também não repudiou a idéia do julgamento futuro. Num universo moral, é preciso contar com a retribuição divina; “do contrário, como julgará Deus o mundo?” (Rm 3.6). Márciom, no entanto, foi radical fora da realidade, e Paulo não. Que lhe seja considerada a justiça de ter entendido a mensagem de Paulo da salvação pela graça – mais do que muitos cristãos “ortodoxos” deste século.
Tertuliano, por exemplo, ao escrever seu tratado Contra Márciom depois da morte deste, desafiou-o dramaticamente a dizer por que não se entregou às extravagâncias do pecado, já que não acreditava que o Deus Pai, que Jesus revelara, julgaria a raça humana. “Sua única resposta”, diz Tertuliano, imitando Márciom, é “absit, absit” (“longe disto, longe disto”) – e sobre uma resposta destas ele despeja sua zombaria. Mas exatamente neste ponto Tertuliano mostra que é ele e não Márcion quem está fora de sintonia com Paulo. O latim absit que Tertuliano põe na boca de Márciom parece ser o equivalente do grego me genoito, que provavelmente foi o que Márciom, cuja língua era grego, usou.
Mas se Márciom rejeitou um desafio como o de Tertuliano com me genoito, ele estava usando estas palavras exatamente no mesmo sentido em que Paulo as usou, ao responder a pergunta: “E daí? Havemos de pecar porque não estamos debaixo da lei, e sim da graça? De modo nenhum!” (Rm 6.15). Márciom, como Paulo, entendeu que continuar no pecado depois de receber pela fé a nova vida (que era nada menos que a vida de Cristo ressurreto compartilhada pelo crente) era uma contradição em termos; “Como viveremos ainda no pecado, nós os que para ele morremos?” (Rm 6.2). Paulo, diferente de Márciom, sabia que um dia teria de prestar contas da sua administração ao Senhor que o empregara; mas não era a perspectiva de comparecer perante o tribunal de Cristo o que o afastava do pecado. Ele, que antes seguira o padrão de justiça prescrito pelos mandamentos mosaicos, não podia contentar-se com um padrão inferior, agora que estava “debaixo da lei de Cristo” (1 Co 9.21). Antes, como não era mais ele quem vivia, mas Cristo quem vivia nele, a perfeição de Cristo era o alvo em direção ao qual ele agora corria. Tertuliano pode ter sabido disto; talvez estivesse simplesmente tentando marcar um ponto no debate com Márciom. Mesmo assim, estava pedindo a resposta: “E será que você tem como única razão para abster-se do pecado o medo da ira vindoura?”.
Márciom, provavelmente, e Paulo, com certeza, conhecia o amor de Cristo como única força propulsora em sua vida. Onde o amor é a força propulsora, não há nenhuma sensação de pressão, conflito ou imposição para fazer o que é certo; a pessoa que é impelida pelo amor de Jesus e capacitada pelo seu Espírito, faz a vontade de Deus, de coração. Porque (como Paulo podia dizer de experiência), “onde está o Espírito do Senhor, aí há liberdade” (2 Co 3.17).
O próximo artigo desta série é O CRESCIMENTO DE ROMA. Em breve.
O Crescimento de Roma
Este é o 2º artigo desta série. O primeiro é:
01 - Paulo, uma Introdução
Nestes dias de superpotências mundiais, não é fácil entender como uma única cidade pôde formar uma base adequada de poder, para estender sua autoridade sobre uma grande área e fundar um imenso império. Houve vários impérios antes, no vale do Eufrates e do Tigre, dos quais o mais bem conhecido foi Babilônia, que, no século dezoito a.C., atingiu este grau de poder sob o grande Hamurabi e, mais tarde, no sexto século a.C., dominou não somente seus vizinhos na Mesopotâmia, mas também as terras a oeste, até as praias do Mediterrâneo e a fronteira com o Egito. O próprio Mediterrâneo testemunhou a ascensão e queda de uma sucessão de cidades imperiais. No quinto século a.C., a cidade de Atenas imperou não só sobre o Mar Egeu, mas também sobre uma grande área do Mediterrâneo ocidental, incluindo a Sicília. Cartago, uma colônia da cidade-estado fenícia Tiro, controlou durante três séculos o Mediterrâneo ocidental, até que sua rival, Roma, obrigou-a a renunciar a todas as suas possessões no além-mar, depois de derrotá-la na Segunda Guerra Púnica, no fim do terceiro século a.C. Já na era cristã, acidade de Veneza conseguiu “ter o Oriente deslumbrante em suas mãos”, desde o tempo das Cruzadas até o século dezessete.
No entanto, de todas estas cidades que dominaram as terras mediterrâneas, nenhuma exerceu uma influência tão permanente sobre elas, e sobre outras bem distantes do Mediterrâneo, do que Roma. Sua ascensão rápida e uma posição de domínio causou uma impressão profunda sobre as mentes dos homens da Antigüidade. Um político grego de nome Políbio, que foi levado a Roma como refém em 167 a.C. e teve a boa sorte de conquistar a amizade de Cípio Emiliano, o principal general romano de sua época, escreveu uma obra de história (ainda de valor excepcional, no que sobreviveu) a fim de refazer os passos pelos quais a cidade de Roma, num período de cinqüenta e três anos (221-168 a.C.), se tornou senhora do mundo mediterrâneo – feito até hoje não igualado na história. Menos exato, mas informativo por causa da sua reflexão brilhante sobre a imagem idealizada de Roma corrente no Oriente Próximo por volta de 100 a.C., é o quadro pintado em 1 Macabeus 8. 1-16, onde nos é contado como Judas Macabeus, em busca de todo apoio possível em sua luta contra os selêucidas, enviou uma embaixada a Roma:
“Judas tomara conhecimento da fama dos romanos. Dizia-se que eram poderosos e valentes, que se compraziam em todos os que se aliassem a eles, e concediam sua amizade a quantos a eles se dirigisse. Falaram-lhe também de suas guerras e das valorosas proezas que tinham realizado entre os gauleses, e como os tinham dominado e tornado seus tributários. E falaram também do que haviam feito na Espanha, para se apoderarem das minas de prata e de ouro que lá se encontram, e como se tornaram senhores de todo esse lugar, pela sua prudência e perseverança, embora o lugar fosse muito distante deles. Ouviu falar também dos reis que tinham vindo contra eles, das extremidades da terra; como eles os destroçaram e lhes infligiram graves derrotas, enquanto os outros lhes pagam um tributo anual. Enfim tinham desbaratado na guerra a Filipe e a Perseu, rei dos ceteus [macedônios], bem como a outros que se haviam rebelado, e os sujeitaram a si. Também Antíoco , o Grande, rei da Ásia, que marchou contra eles, para enfrentá-los com cento e vinte elefantes, cavalaria, carros de guerra e um enorme exército, foi por eles esmagado. Capturado vivo, obrigaram-no a pagar, ele e seus sucessores, um pesado tributo, além da entrega de reféns e da cessão de territórios: a região da Lícia, a Mísia e a Lídia, de entre as mais belas de suas províncias, arrebataram-nas dele e as entregaram ao rei [de Pérgamo] Eumenes. Tendo os da Grécia conjurado para ir exterminá-los, os romanos , sabendo do plano, enviaram contra eles um só general para os debelar: caiu um grande número de feridos, levaram cativas suas mulheres e seus filhos, saquearam seus bens, dominaram seu país, destruíram suas fortalezas e reduziram-nos à escravidão, até o dia de hoje. Quanto aos outros reinos e à ilhas que lhes tinham resistido, os romanos os destroçaram e submeteram. Com os seus amigos, porém, e com os que se fiavam no seu apoio, eles mantiveram sua amizade.
Estenderam seu poder sobre os reis, quer de perto quer de longe, de modo que todos os que ouviam pronunciar o seu nome ficavam atemorizados. Exercem a realeza aqueles a quem eles querem ajudar a exercê-la; por outro lado, depõem aqueles a quem querem depor: a tais alturas chega o seu poder! Apesar de tudo, nenhum deles cingiu o diadema, nem revestiu a púrpura para se engrandecer com ela; mas criaram para si um conselho, onde cada dia deliberam trezentos e vinte homens, constantemente consultando-se sobre a multidão e sobre como dirigi-la ordenadamente. Confiam por um ano o poder sobre si e o governo de todos os seus domínios a um só homem, ao qual unicamente todos obedecem, sem haver inveja ou rivalidade entre eles”.
Este relato tem muitas inexatidões nos detalhes, das quais a mais surpreendente é a afirmação, no fim, de que eles confiam o poder supremo a um homem a cada ano; na verdade, para evitar a concentração de poder nas mãos de um só homem, eles elegiam dois magistrados supremos (cônsules) em conjunto, cada um deles com direito de veto sobre os procedimentos dos outros. Mesmo assim, ele nos dá uma boa idéia do que se pensava dos romanos no oeste da Ásia naquela época; a experiência da sua opressão, quando estavam mais próximos, deu lugar a um quadro muito menos favorável depois de duas ou três décadas.
De um Povoado sobre um Monte a Império Mundial
Roma começou como um grupo de povoados agrícolas e pastoris na planície latina, na margem esquerda do Tibre. Num estágio inicial da sua história, ela caiu sob controle etrusco, mas depois de uma ou duas gerações conseguiu sacudir este jugo. Os etruscos se retiraram para a margem direita do Tibre. A carreira de Roma como conquistadora do mundo começou, quando atravessou o Tibre para sitiar e atacar a cidade etrusca de Veii (c. 400 a.C.). Dali em diante, Roma se tornou primeiro senhora do Lácio e depois da Itália. A intervenção em uma briga interna na Sicília em 264 a.C. a colocou em confronto com os cartagineses, que tinham interesses comerciais substanciais na Sicília. O resultado foram as duas guerras púnicas (264-241 e 218-202 a.C.), sendo que na segunda, Roma chegou à beira de ser aniquilada; no entanto, depois da derrota decisiva de Aníbal em Zama, no norte da África, ela emergiu como senhora inquestionável do Mediterrâneo ocidental.
Roma não teve alívio, depois da sua luta exaustiva contra Aníbal e suas forças: a Segunda Guerra Púnica mal tinha acabado, quando a cidade se viu engajada em uma guerra com a Macedônia, um dos estados que resultara da herança do império de Alexandre. Em 195 a.C., Roma restituiu às cidades-estado da Grécia a liberdade que tinham perdido para Filipe, o pai de Alexandre, quase um século e meio antes. Esta liberdade restaurada, na verdade, era muito limitada, já que Roma constituiu a si mesma protetora das cidades libertadas. Nenhum outro poder podia intervir impunemente em seus assuntos: quando o Reino Selêucida (outro dos estados que sucedera ao império de Alexandre) tentou fazer isto em 192 a.C., não foi apenas repelido, mas invadido pelos legionários romanos, e viu-se aleijado e empobrecido de modo irrecuperável. Roma não perdeu nenhuma oportunidade para encorajar a oposição aos interesses selêucidas, seja no Egito dos ptolomeus (mais um dos estados sucessores), seja entre os insurretos judeus, liderados por Judas Macabeu e seus irmãos (de 168 a.C. em diante).
Estes movimentos levaram ao envolvimento cada vez maior de Roma no Oriente Próximo. Em 133 a.C. o último rei de Pérgamo, um aliado de Roma, morreu e legou seu território (a parte oeste da Ásia Menor) ao senado e povo romanos. O legado foi aceito e o território se tornou a província romana da Ásia. O domínio romano não era muito popular e, em 88 a.C., uma insurreição anti-romana foi fomentada na província por Mitridates VI, rei do Ponto (na costa do mar Negro da Ásia Menor), que também tinha pretensões imperiais naquela região. A conseqüência foi uma guerra entre Roma e Ponto, que se arrastou por um quarto de século. Quando as armas romanas triunfaram, no fim deste período, sob o general Pompeu, este se viu diante da tarefa de reconstruir toda a ordem política no oeste da Ásia. Ele ocupou a Judéia em 63 a.C., depois de dar à Síria a condição de província romana no ano anterior.
Durante trinta ou mais anos depois da pacificação por Pompeu, o mundo romano foi dilacerado por rivais aspirantes ao poder supremo, até que, na vitória naval de Actium (31 a.C.), que significou a queda de Cleópatra, a última soberana do Egito dos ptolomeus, com seu aliado romano Antônio, deixou Otaviano, filho adotivo e herdeiro político de Júlio César, como senhor do mundo romano. Um estadista rematado, Otaviano, que em 27 a.C. adotou o título de Augusto, preservou a moldura republicana do Estado romano, mas concentrou o poder real em suas mãos. Em Roma ele se contentava com o título princeps, primeiro cidadão da república; nas províncias orientais, porém, ele e seus sucessores foram reconhecidos pelo que eram de fato: herdeiros do domínio de Alexandre e das dinastias entre as quais o império deste fora dividido – rei dos reis, como os grandes potentados orientais da Antigüidade.
Sob o controle de Roma, portanto – primeiro da Roma original e depois, do quarto século em diante, da Nova Roma estabelecida em Constantinopla – os povos do Oriente Próximo continuaram a viver até a conquista árabe do sétimo século.
Este artigo está no tópico – Paulo, o Apóstolo
O próximo artigo desta série é OS JUDEUS SOB DOMÍNIO ESTRANGEIRO a ser postado em breve.
01 - Paulo, uma Introdução
Nestes dias de superpotências mundiais, não é fácil entender como uma única cidade pôde formar uma base adequada de poder, para estender sua autoridade sobre uma grande área e fundar um imenso império. Houve vários impérios antes, no vale do Eufrates e do Tigre, dos quais o mais bem conhecido foi Babilônia, que, no século dezoito a.C., atingiu este grau de poder sob o grande Hamurabi e, mais tarde, no sexto século a.C., dominou não somente seus vizinhos na Mesopotâmia, mas também as terras a oeste, até as praias do Mediterrâneo e a fronteira com o Egito. O próprio Mediterrâneo testemunhou a ascensão e queda de uma sucessão de cidades imperiais. No quinto século a.C., a cidade de Atenas imperou não só sobre o Mar Egeu, mas também sobre uma grande área do Mediterrâneo ocidental, incluindo a Sicília. Cartago, uma colônia da cidade-estado fenícia Tiro, controlou durante três séculos o Mediterrâneo ocidental, até que sua rival, Roma, obrigou-a a renunciar a todas as suas possessões no além-mar, depois de derrotá-la na Segunda Guerra Púnica, no fim do terceiro século a.C. Já na era cristã, acidade de Veneza conseguiu “ter o Oriente deslumbrante em suas mãos”, desde o tempo das Cruzadas até o século dezessete.
No entanto, de todas estas cidades que dominaram as terras mediterrâneas, nenhuma exerceu uma influência tão permanente sobre elas, e sobre outras bem distantes do Mediterrâneo, do que Roma. Sua ascensão rápida e uma posição de domínio causou uma impressão profunda sobre as mentes dos homens da Antigüidade. Um político grego de nome Políbio, que foi levado a Roma como refém em 167 a.C. e teve a boa sorte de conquistar a amizade de Cípio Emiliano, o principal general romano de sua época, escreveu uma obra de história (ainda de valor excepcional, no que sobreviveu) a fim de refazer os passos pelos quais a cidade de Roma, num período de cinqüenta e três anos (221-168 a.C.), se tornou senhora do mundo mediterrâneo – feito até hoje não igualado na história. Menos exato, mas informativo por causa da sua reflexão brilhante sobre a imagem idealizada de Roma corrente no Oriente Próximo por volta de 100 a.C., é o quadro pintado em 1 Macabeus 8. 1-16, onde nos é contado como Judas Macabeus, em busca de todo apoio possível em sua luta contra os selêucidas, enviou uma embaixada a Roma:
“Judas tomara conhecimento da fama dos romanos. Dizia-se que eram poderosos e valentes, que se compraziam em todos os que se aliassem a eles, e concediam sua amizade a quantos a eles se dirigisse. Falaram-lhe também de suas guerras e das valorosas proezas que tinham realizado entre os gauleses, e como os tinham dominado e tornado seus tributários. E falaram também do que haviam feito na Espanha, para se apoderarem das minas de prata e de ouro que lá se encontram, e como se tornaram senhores de todo esse lugar, pela sua prudência e perseverança, embora o lugar fosse muito distante deles. Ouviu falar também dos reis que tinham vindo contra eles, das extremidades da terra; como eles os destroçaram e lhes infligiram graves derrotas, enquanto os outros lhes pagam um tributo anual. Enfim tinham desbaratado na guerra a Filipe e a Perseu, rei dos ceteus [macedônios], bem como a outros que se haviam rebelado, e os sujeitaram a si. Também Antíoco , o Grande, rei da Ásia, que marchou contra eles, para enfrentá-los com cento e vinte elefantes, cavalaria, carros de guerra e um enorme exército, foi por eles esmagado. Capturado vivo, obrigaram-no a pagar, ele e seus sucessores, um pesado tributo, além da entrega de reféns e da cessão de territórios: a região da Lícia, a Mísia e a Lídia, de entre as mais belas de suas províncias, arrebataram-nas dele e as entregaram ao rei [de Pérgamo] Eumenes. Tendo os da Grécia conjurado para ir exterminá-los, os romanos , sabendo do plano, enviaram contra eles um só general para os debelar: caiu um grande número de feridos, levaram cativas suas mulheres e seus filhos, saquearam seus bens, dominaram seu país, destruíram suas fortalezas e reduziram-nos à escravidão, até o dia de hoje. Quanto aos outros reinos e à ilhas que lhes tinham resistido, os romanos os destroçaram e submeteram. Com os seus amigos, porém, e com os que se fiavam no seu apoio, eles mantiveram sua amizade.
Estenderam seu poder sobre os reis, quer de perto quer de longe, de modo que todos os que ouviam pronunciar o seu nome ficavam atemorizados. Exercem a realeza aqueles a quem eles querem ajudar a exercê-la; por outro lado, depõem aqueles a quem querem depor: a tais alturas chega o seu poder! Apesar de tudo, nenhum deles cingiu o diadema, nem revestiu a púrpura para se engrandecer com ela; mas criaram para si um conselho, onde cada dia deliberam trezentos e vinte homens, constantemente consultando-se sobre a multidão e sobre como dirigi-la ordenadamente. Confiam por um ano o poder sobre si e o governo de todos os seus domínios a um só homem, ao qual unicamente todos obedecem, sem haver inveja ou rivalidade entre eles”.
Este relato tem muitas inexatidões nos detalhes, das quais a mais surpreendente é a afirmação, no fim, de que eles confiam o poder supremo a um homem a cada ano; na verdade, para evitar a concentração de poder nas mãos de um só homem, eles elegiam dois magistrados supremos (cônsules) em conjunto, cada um deles com direito de veto sobre os procedimentos dos outros. Mesmo assim, ele nos dá uma boa idéia do que se pensava dos romanos no oeste da Ásia naquela época; a experiência da sua opressão, quando estavam mais próximos, deu lugar a um quadro muito menos favorável depois de duas ou três décadas.
De um Povoado sobre um Monte a Império Mundial
Roma começou como um grupo de povoados agrícolas e pastoris na planície latina, na margem esquerda do Tibre. Num estágio inicial da sua história, ela caiu sob controle etrusco, mas depois de uma ou duas gerações conseguiu sacudir este jugo. Os etruscos se retiraram para a margem direita do Tibre. A carreira de Roma como conquistadora do mundo começou, quando atravessou o Tibre para sitiar e atacar a cidade etrusca de Veii (c. 400 a.C.). Dali em diante, Roma se tornou primeiro senhora do Lácio e depois da Itália. A intervenção em uma briga interna na Sicília em 264 a.C. a colocou em confronto com os cartagineses, que tinham interesses comerciais substanciais na Sicília. O resultado foram as duas guerras púnicas (264-241 e 218-202 a.C.), sendo que na segunda, Roma chegou à beira de ser aniquilada; no entanto, depois da derrota decisiva de Aníbal em Zama, no norte da África, ela emergiu como senhora inquestionável do Mediterrâneo ocidental.
Roma não teve alívio, depois da sua luta exaustiva contra Aníbal e suas forças: a Segunda Guerra Púnica mal tinha acabado, quando a cidade se viu engajada em uma guerra com a Macedônia, um dos estados que resultara da herança do império de Alexandre. Em 195 a.C., Roma restituiu às cidades-estado da Grécia a liberdade que tinham perdido para Filipe, o pai de Alexandre, quase um século e meio antes. Esta liberdade restaurada, na verdade, era muito limitada, já que Roma constituiu a si mesma protetora das cidades libertadas. Nenhum outro poder podia intervir impunemente em seus assuntos: quando o Reino Selêucida (outro dos estados que sucedera ao império de Alexandre) tentou fazer isto em 192 a.C., não foi apenas repelido, mas invadido pelos legionários romanos, e viu-se aleijado e empobrecido de modo irrecuperável. Roma não perdeu nenhuma oportunidade para encorajar a oposição aos interesses selêucidas, seja no Egito dos ptolomeus (mais um dos estados sucessores), seja entre os insurretos judeus, liderados por Judas Macabeu e seus irmãos (de 168 a.C. em diante).
Estes movimentos levaram ao envolvimento cada vez maior de Roma no Oriente Próximo. Em 133 a.C. o último rei de Pérgamo, um aliado de Roma, morreu e legou seu território (a parte oeste da Ásia Menor) ao senado e povo romanos. O legado foi aceito e o território se tornou a província romana da Ásia. O domínio romano não era muito popular e, em 88 a.C., uma insurreição anti-romana foi fomentada na província por Mitridates VI, rei do Ponto (na costa do mar Negro da Ásia Menor), que também tinha pretensões imperiais naquela região. A conseqüência foi uma guerra entre Roma e Ponto, que se arrastou por um quarto de século. Quando as armas romanas triunfaram, no fim deste período, sob o general Pompeu, este se viu diante da tarefa de reconstruir toda a ordem política no oeste da Ásia. Ele ocupou a Judéia em 63 a.C., depois de dar à Síria a condição de província romana no ano anterior.
Durante trinta ou mais anos depois da pacificação por Pompeu, o mundo romano foi dilacerado por rivais aspirantes ao poder supremo, até que, na vitória naval de Actium (31 a.C.), que significou a queda de Cleópatra, a última soberana do Egito dos ptolomeus, com seu aliado romano Antônio, deixou Otaviano, filho adotivo e herdeiro político de Júlio César, como senhor do mundo romano. Um estadista rematado, Otaviano, que em 27 a.C. adotou o título de Augusto, preservou a moldura republicana do Estado romano, mas concentrou o poder real em suas mãos. Em Roma ele se contentava com o título princeps, primeiro cidadão da república; nas províncias orientais, porém, ele e seus sucessores foram reconhecidos pelo que eram de fato: herdeiros do domínio de Alexandre e das dinastias entre as quais o império deste fora dividido – rei dos reis, como os grandes potentados orientais da Antigüidade.
Sob o controle de Roma, portanto – primeiro da Roma original e depois, do quarto século em diante, da Nova Roma estabelecida em Constantinopla – os povos do Oriente Próximo continuaram a viver até a conquista árabe do sétimo século.
Este artigo está no tópico – Paulo, o Apóstolo
O próximo artigo desta série é OS JUDEUS SOB DOMÍNIO ESTRANGEIRO a ser postado em breve.
Os Judeus sob Domínio Estrangeiro
Este é o 3º artigo desta série. Os dois primeiros são:
01 - Paulo, uma Introdução
02 - O Crescimento de Roma
De Ciro até Vespasiano
Ciro, o fundador do Império Persa (559-529 a.C.), e seus sucessores foram os imperialistas mais iluminados que o mundo antigo tinha visto atém aquela época. Eles entenderam a sabedoria de manter as nações súditas contentes. Em vez de deportá-las à força para regiões distantes, a fim de quebrar sua vontade ou sua capacidade para rebelar-se, como tinham feito os assírios e os babilônios, eles os deixaram viver em sua pátria (a não ser que preferissem morar em outro lugar). Em vez de obrigá-los a adorar os deuses da etnia dominadora, incentivavam-nos a praticar sua religião ancestral e até, às vezes, davam ajuda financeira para isto. Há evidências desta política no Egito (que eles conquistaram em 525 a.C.), e entre as colônias gregas no oeste da Ásia Menor, assim como no trato deles com os exilados na Judéia que eles autorizaram a retornar ao seu território nativo, de onde tinham sido arrancados pelos babilônios. Havia dois níveis de administração da província da Judéia sob os persas. O rei persa era representado por um governador, que podia ser judeu (como Neemias) ou não. O governador era responsável para salvaguardar os interesses imperiais, como a manutenção da segurança e a arrecadação dos tributos. A administração interna da Judéia, porém, estava nas mãos do sumo sacerdote – sempre um membro da família de Zadoque. A Judéia sob os persas cobria uma área restrita em torno de Jerusalém; estava organizada como um estado-templo, sendo que à cidade de Jerusalém foi conferida a condição de cidade santa. Havia outros estados-templo organizados dentro do Império Persa, que mantiveram esta condição, quando o domínio persa foi substituído pelo dos gregos e macedônios, depois da conquista de Alexandre, o Grande (336-323 a.C.). Quando o império de Alexandre foi dividido após a sua morte, a Judéia se viu submetida primeiro à dinastia dos ptolomeus, que governavam a partir de Alexandria, e mais tarde (após 198 a.C.) à dos selêucidas, que governavam a partir de Antioquia na Síria. Jerusalém e Judéia, porém, mantiveram sua constituição sacra, exceto em algumas tentativas de abolir ou modificá-la, até a irrupção da revolta judaica contra Roma em 66 d.C.
A tentativa mais digna de nota de abolir a constituição sacra de Jerusalém e Judéia foi feita pelo rei selêucida Antíoco IV (175-164 a.C.) que, em boa parte por razões de segurança externa, tentou assimilar os súditos judeus à cultura e religião do estilo de vida helenista que era seguido nos seus demais domínios. A Judéia ficava na fronteira entre o reino dele e o Egito, e esta fronteira passou a ser um ponto sensível depois que os romanos assumiram o papel de protetores do Egito contra as ambições selêucidas em 168 a.C. A política de Antíoco estava mal orientada e acabou em fracasso. Os judeus, sob Judas Macabeu e seus irmãos, levantaram uma resistência que fez com que eles recuperassem sua liberdade religiosa em 164 a.C. e, vinte e dois anos mais tarde (em boa parte graças à guerra civil do reino selêucida), a liberdade política. Por quase oitenta anos a Judéia foi governada pela dinastia nativa dos sacerdotes-reis hasmoneus.
Quando a Judéia caiu sob controle romano em 63 a.C., a monarquia hasmonéia foi abolida, mas a santidade de Jerusalém, mantida. Por algum tempo os romanos preferiram controlar a Judéia de modo indireto, por meio de governantes judeus – em especial por meio de Herodes, o Grande (37-34 a.C.), que violou sua constituição sacra com mais desrespeito do que qualquer soberano gentio, com exceção de Antíoco IV. Quando, porém, no ano 6 d.C., a Judéia foi transformada em província romana, ela recebeu o mesmo tipo de administração em dois níveis que tinha sob domínio persa e greco-macedônio. O imperador romano indicava um governador provincial, chamado de prefeito ou procurador, que era responsável por manter a paz e a ordem e por garantir a arrecadação suficiente do “tributo a César”. Os assuntos internos dos judeus na Judéia, no entanto, eram administrados pelo sumo sacerdote, junto com um conselho de setenta anciãos (o Sinédrio), o qual ele presidia ex officio. O sumo sacerdote e seus companheiros naturalmente reconheciam o poder supremo de Roma, e se esforçavam para manter relações razoavelmente boas com o governador. Isto, às vezes, não era tarefa fácil, por causa da inexperiência ou insensibilidade de alguns governadores. Entretanto, como último recurso, o sumo sacerdote e seus amigos tinham canais de comunicação com Roma, de modo a passar por cima da cabeça do governador e registrar uma queixa que podia levá-lo a ser severamente reprimido ou até a ser demitido do cargo. Um dos melhores exemplos deste jogo de poder ente os dois postos de autoridade na província é a ação e reação entre os principais sacerdotes e Pôncio Pilatos nos relatos do julgamento de Jesus nos evangelhos.
Apesar de seus interesses internos estarem nas mãos da sua própria organização religiosa, muitos judeus da Judéia sentiam coceira com o governo romano. É verdade que eles tinham de pagar impostos dobrados: o tributo a César tinha de ser pago além e acima das suas obrigações com o templo (que excedia em muito o dízimo, o imposto de dez por cento sobre a renda). Os principais sacerdotes e líderes do Sinédrio eram ricos, a ponto de não terem suficiente percepção da pressão econômica em que viviam seus conterrâneos mais pobres; além disso, eles sabiam que a manutenção do seu estilo de vida dependia da estabilidade da ordem existente. Seu modus vivendi com as forças de ocupação, portanto, não ajudava em nada a torná-los mais queridos ao povo comum.
Algumas províncias do império assimilaram a civilização romana de maneira tão completa que seus habitantes passaram a considerar-se romanos, e seus descendentes até hoje falam línguas que se desenvolveram do “latim vulgar”. Os judeus da Judéia talvez fossem os menos assimilados de todos os súditos de Roma. Isso se devia a sua religião única e exclusiva, cuja prática lhes estava garantida por decretos imperiais, como lhes fora prometido por soberanos anteriores. Sob estes governantes gentios anteriores, nunca fora imposto aos judeus que pagassem um tributo que, de alguma forma, lhes fosse ofensivo ao Deus que adoravam. No momento em que este pagamento de tributo a estrangeiros recebia um significado religioso, tendia a ser interpretado como um sinal de desprazer de Iahveh com seu povo: se ele permitia que estrangeiros governassem sobre eles, o pagamento de tributo a eles era um ato de submissão ao julgamento divino. Quando, porém, a Judéia se tornou uma província romana em 6 d.C., e sua população foi obrigada a pagar tributo diretamente ao imperador, uma nova doutrina começou a ser difundida: que Israel , como povo de Deus, vivendo na terra santa, ao reconhecer um governante pagão pagando-lhe tributo, tornava-se culpado de alta traição contra o Deus dos seus antepassados, o verdadeiro rei de Israel. O principal ensinador desta nova doutrina era Judas, o Galileu, que na época liderou uma revolta contra o governo romano da nova província. A revolta foi sufocada, mas o ensino sobreviveu e tornou-se um traço dominante da política dos zelotes. O partido dos zelotes, que não faziam distinção entre o que chamaríamos de política e religião, passou a ser ativo de 44 d.C. em diante, apesar de não ter iniciado a revolta contra Roma em 66 d.C., logo assumiu a liderança da guerra que estourou.
Os revoltados continuaram a guerra com esperança contra todas as evidências. Eles tinham encarado a luta para restaurar os direitos do Deus de Israel à coroa; ele não podia entregá-los à própria sorte. Confiaram em um oráculo antigo – talvez uma combinação de oráculos – que entendiam estarem na hora de se cumprir, segundo os quais do domínio do mundo devia passar das mais dos gentios para as dos judeus. Uma vitória inicial sobre forças romanas muito superiores encheu-os da confiança de que os sucessos de Judas Macabeu (que, como seus companheiros, fora impelido por um zelo por Deus semelhante) se repetiriam na experiência deles. As guerras intestinas em todo o império e na própria Roma, que marcaram o “ano dos quatro imperadores” (69 d.C.), os fizeram pensar que o imperialismo gentio, representado pelo estado romano, estava em seus estertores de morte. No fim, porém, foi a comunidade judaica, na forma que assumira desde o exílio babilônico seis séculos antes, que desabou. O templo em Jerusalém foi queimado, a cidade saqueada e deixada em ruínas, sua condição sacra abolida, o sistema de sumos sacerdotes extinto, a ordem de sacrifícios encerrada. O meio siclo anual que os judeus adultos em todo o mundo tinham até então pago para a manutenção do templo, sob a proteção das autoridades romanas, dali em diante tinham de ser pago a um fundo especial – o fiscus indiacus – para o sustento do templo de Júpiter no monte Capitolino em Roma.
Mesmo na Judéia, no entanto, a situação dos judeus poderia ter sido pior. Eles obtiveram permissão para instituir um novo Sinédrio de estudiosos para codificar sua lei religiosa, e, na verdade, a vida religiosa judaica floresceu ainda melhor depois que o templo e seu ritual desapareceram.
Os Judeus da Dispersão
Naquela época, como hoje, havia muito mais judeus vivendo fora da Judéia do que dentro das suas fronteiras, e (exceto na cobrança do fiscus indaicus depois de 70 d.C.) os judeus da dispersão não perderam os privilégios que tinham em relação à lei romana, em resultado da guerra. Houve agitações antijudaicas e perseguições em diversas cidades da Síria e do Egito, mas isso era outra questão. Na verdade, uma sucessão de editos promulgados pelas mais altas autoridades tinha garantido aos judeus, em todo o Império Romano, privilégios bem excepcionais, e estes não foram revogados.
A história da dispersão judaica pode ser traçada desde o começo do sexto século a.C. desta época. Temos amplas evidências de que judeus tinham se fixado no Egito, e indícios em lugares na Ásia Menor, tão distantes como Sardes, capital do reino da Lídia (a Sefarade de Ob 20). Um grande número de exilados na Babilônia se fixara em seu novo lar e não fizeram uso da permissão de retornar à Judéia. Sob governo persa, eles podiam ser encontrados em todos os territórios do império, até nas margens do mar Cáspio; e as conquistas de Alexandre lhes possibilitaram espalhar-se para ainda mais longe. Houve judeus morando em Alexandria, desde a sua fundação em 331 a.C., o primeiro século d.C. os judeus eram maioria em dois dos cinco bairros da cidade. Por volta de 300 a.C., o primeiro Ptolomeu colocou um grupo de judeus na Cirenaica, para ajudar a garantir a lealdade desta província. Um século mais tarde, o rei selêucida Antíoco III, com propósito similar, mudou muitos judeus para a Frigia e a Lídia, e depois que arrebatou a Judéia e a Celessíria dos ptolomeus, encorajou povoamentos judaicos em Antioquia, sua capital, e em outras cidades do seu reino. Na própria Roma, havia uma colônia judaica, mesmo antes da incorporação da Judéia no império em 63 a.C., e ela aumentou em muito nos anos seguintes. Estima-se que no princípio do primeiro século d.C., havia entre 40.000 e 60.000 judeus em Roma – provavelmente tantos quantos na própria Jerusalém. A descoberta e estudo de seis catacumbas judaicas em Roma aumentaram muito nosso conhecimento da vida judaica na cidade. Os judeus de Roma parecem ter se concentrado na margem direita do Tibre (Tastevere), onde a maioria das onze sinagogas atestadas por inscrições provavelmente estava localizada.
A extensão da dispersão judaica, na época dos apóstolos, é evidente na lista de Lucas de “judeus, homens piedosos” que estavam presentes em Jerusalém, para a festa de Pentecostes em 30 d.C., desde “partos, medos, elamitas e os naturais da Mesopotâmia” até visitantes de Roma, no oeste, “tanto judeus como prosélitos” (At. 2.5-11).
Não deixe de ler o próximo artigo: CIDADE NÃO INSIGNIFICANTE
Ciro, o fundador do Império Persa (559-529 a.C.), e seus sucessores foram os imperialistas mais iluminados que o mundo antigo tinha visto atém aquela época. Eles entenderam a sabedoria de manter as nações súditas contentes. Em vez de deportá-las à força para regiões distantes, a fim de quebrar sua vontade ou sua capacidade para rebelar-se, como tinham feito os assírios e os babilônios, eles os deixaram viver em sua pátria (a não ser que preferissem morar em outro lugar). Em vez de obrigá-los a adorar os deuses da etnia dominadora, incentivavam-nos a praticar sua religião ancestral e até, às vezes, davam ajuda financeira para isto. Há evidências desta política no Egito (que eles conquistaram em 525 a.C.), e entre as colônias gregas no oeste da Ásia Menor, assim como no trato deles com os exilados na Judéia que eles autorizaram a retornar ao seu território nativo, de onde tinham sido arrancados pelos babilônios. Havia dois níveis de administração da província da Judéia sob os persas. O rei persa era representado por um governador, que podia ser judeu (como Neemias) ou não. O governador era responsável para salvaguardar os interesses imperiais, como a manutenção da segurança e a arrecadação dos tributos. A administração interna da Judéia, porém, estava nas mãos do sumo sacerdote – sempre um membro da família de Zadoque. A Judéia sob os persas cobria uma área restrita em torno de Jerusalém; estava organizada como um estado-templo, sendo que à cidade de Jerusalém foi conferida a condição de cidade santa. Havia outros estados-templo organizados dentro do Império Persa, que mantiveram esta condição, quando o domínio persa foi substituído pelo dos gregos e macedônios, depois da conquista de Alexandre, o Grande (336-323 a.C.). Quando o império de Alexandre foi dividido após a sua morte, a Judéia se viu submetida primeiro à dinastia dos ptolomeus, que governavam a partir de Alexandria, e mais tarde (após 198 a.C.) à dos selêucidas, que governavam a partir de Antioquia na Síria. Jerusalém e Judéia, porém, mantiveram sua constituição sacra, exceto em algumas tentativas de abolir ou modificá-la, até a irrupção da revolta judaica contra Roma em 66 d.C.
A tentativa mais digna de nota de abolir a constituição sacra de Jerusalém e Judéia foi feita pelo rei selêucida Antíoco IV (175-164 a.C.) que, em boa parte por razões de segurança externa, tentou assimilar os súditos judeus à cultura e religião do estilo de vida helenista que era seguido nos seus demais domínios. A Judéia ficava na fronteira entre o reino dele e o Egito, e esta fronteira passou a ser um ponto sensível depois que os romanos assumiram o papel de protetores do Egito contra as ambições selêucidas em 168 a.C. A política de Antíoco estava mal orientada e acabou em fracasso. Os judeus, sob Judas Macabeu e seus irmãos, levantaram uma resistência que fez com que eles recuperassem sua liberdade religiosa em 164 a.C. e, vinte e dois anos mais tarde (em boa parte graças à guerra civil do reino selêucida), a liberdade política. Por quase oitenta anos a Judéia foi governada pela dinastia nativa dos sacerdotes-reis hasmoneus.
Quando a Judéia caiu sob controle romano em 63 a.C., a monarquia hasmonéia foi abolida, mas a santidade de Jerusalém, mantida. Por algum tempo os romanos preferiram controlar a Judéia de modo indireto, por meio de governantes judeus – em especial por meio de Herodes, o Grande (37-34 a.C.), que violou sua constituição sacra com mais desrespeito do que qualquer soberano gentio, com exceção de Antíoco IV. Quando, porém, no ano 6 d.C., a Judéia foi transformada em província romana, ela recebeu o mesmo tipo de administração em dois níveis que tinha sob domínio persa e greco-macedônio. O imperador romano indicava um governador provincial, chamado de prefeito ou procurador, que era responsável por manter a paz e a ordem e por garantir a arrecadação suficiente do “tributo a César”. Os assuntos internos dos judeus na Judéia, no entanto, eram administrados pelo sumo sacerdote, junto com um conselho de setenta anciãos (o Sinédrio), o qual ele presidia ex officio. O sumo sacerdote e seus companheiros naturalmente reconheciam o poder supremo de Roma, e se esforçavam para manter relações razoavelmente boas com o governador. Isto, às vezes, não era tarefa fácil, por causa da inexperiência ou insensibilidade de alguns governadores. Entretanto, como último recurso, o sumo sacerdote e seus amigos tinham canais de comunicação com Roma, de modo a passar por cima da cabeça do governador e registrar uma queixa que podia levá-lo a ser severamente reprimido ou até a ser demitido do cargo. Um dos melhores exemplos deste jogo de poder ente os dois postos de autoridade na província é a ação e reação entre os principais sacerdotes e Pôncio Pilatos nos relatos do julgamento de Jesus nos evangelhos.
Apesar de seus interesses internos estarem nas mãos da sua própria organização religiosa, muitos judeus da Judéia sentiam coceira com o governo romano. É verdade que eles tinham de pagar impostos dobrados: o tributo a César tinha de ser pago além e acima das suas obrigações com o templo (que excedia em muito o dízimo, o imposto de dez por cento sobre a renda). Os principais sacerdotes e líderes do Sinédrio eram ricos, a ponto de não terem suficiente percepção da pressão econômica em que viviam seus conterrâneos mais pobres; além disso, eles sabiam que a manutenção do seu estilo de vida dependia da estabilidade da ordem existente. Seu modus vivendi com as forças de ocupação, portanto, não ajudava em nada a torná-los mais queridos ao povo comum.
Algumas províncias do império assimilaram a civilização romana de maneira tão completa que seus habitantes passaram a considerar-se romanos, e seus descendentes até hoje falam línguas que se desenvolveram do “latim vulgar”. Os judeus da Judéia talvez fossem os menos assimilados de todos os súditos de Roma. Isso se devia a sua religião única e exclusiva, cuja prática lhes estava garantida por decretos imperiais, como lhes fora prometido por soberanos anteriores. Sob estes governantes gentios anteriores, nunca fora imposto aos judeus que pagassem um tributo que, de alguma forma, lhes fosse ofensivo ao Deus que adoravam. No momento em que este pagamento de tributo a estrangeiros recebia um significado religioso, tendia a ser interpretado como um sinal de desprazer de Iahveh com seu povo: se ele permitia que estrangeiros governassem sobre eles, o pagamento de tributo a eles era um ato de submissão ao julgamento divino. Quando, porém, a Judéia se tornou uma província romana em 6 d.C., e sua população foi obrigada a pagar tributo diretamente ao imperador, uma nova doutrina começou a ser difundida: que Israel , como povo de Deus, vivendo na terra santa, ao reconhecer um governante pagão pagando-lhe tributo, tornava-se culpado de alta traição contra o Deus dos seus antepassados, o verdadeiro rei de Israel. O principal ensinador desta nova doutrina era Judas, o Galileu, que na época liderou uma revolta contra o governo romano da nova província. A revolta foi sufocada, mas o ensino sobreviveu e tornou-se um traço dominante da política dos zelotes. O partido dos zelotes, que não faziam distinção entre o que chamaríamos de política e religião, passou a ser ativo de 44 d.C. em diante, apesar de não ter iniciado a revolta contra Roma em 66 d.C., logo assumiu a liderança da guerra que estourou.
Os revoltados continuaram a guerra com esperança contra todas as evidências. Eles tinham encarado a luta para restaurar os direitos do Deus de Israel à coroa; ele não podia entregá-los à própria sorte. Confiaram em um oráculo antigo – talvez uma combinação de oráculos – que entendiam estarem na hora de se cumprir, segundo os quais do domínio do mundo devia passar das mais dos gentios para as dos judeus. Uma vitória inicial sobre forças romanas muito superiores encheu-os da confiança de que os sucessos de Judas Macabeu (que, como seus companheiros, fora impelido por um zelo por Deus semelhante) se repetiriam na experiência deles. As guerras intestinas em todo o império e na própria Roma, que marcaram o “ano dos quatro imperadores” (69 d.C.), os fizeram pensar que o imperialismo gentio, representado pelo estado romano, estava em seus estertores de morte. No fim, porém, foi a comunidade judaica, na forma que assumira desde o exílio babilônico seis séculos antes, que desabou. O templo em Jerusalém foi queimado, a cidade saqueada e deixada em ruínas, sua condição sacra abolida, o sistema de sumos sacerdotes extinto, a ordem de sacrifícios encerrada. O meio siclo anual que os judeus adultos em todo o mundo tinham até então pago para a manutenção do templo, sob a proteção das autoridades romanas, dali em diante tinham de ser pago a um fundo especial – o fiscus indiacus – para o sustento do templo de Júpiter no monte Capitolino em Roma.
Mesmo na Judéia, no entanto, a situação dos judeus poderia ter sido pior. Eles obtiveram permissão para instituir um novo Sinédrio de estudiosos para codificar sua lei religiosa, e, na verdade, a vida religiosa judaica floresceu ainda melhor depois que o templo e seu ritual desapareceram.
Os Judeus da Dispersão
Naquela época, como hoje, havia muito mais judeus vivendo fora da Judéia do que dentro das suas fronteiras, e (exceto na cobrança do fiscus indaicus depois de 70 d.C.) os judeus da dispersão não perderam os privilégios que tinham em relação à lei romana, em resultado da guerra. Houve agitações antijudaicas e perseguições em diversas cidades da Síria e do Egito, mas isso era outra questão. Na verdade, uma sucessão de editos promulgados pelas mais altas autoridades tinha garantido aos judeus, em todo o Império Romano, privilégios bem excepcionais, e estes não foram revogados.
A história da dispersão judaica pode ser traçada desde o começo do sexto século a.C. desta época. Temos amplas evidências de que judeus tinham se fixado no Egito, e indícios em lugares na Ásia Menor, tão distantes como Sardes, capital do reino da Lídia (a Sefarade de Ob 20). Um grande número de exilados na Babilônia se fixara em seu novo lar e não fizeram uso da permissão de retornar à Judéia. Sob governo persa, eles podiam ser encontrados em todos os territórios do império, até nas margens do mar Cáspio; e as conquistas de Alexandre lhes possibilitaram espalhar-se para ainda mais longe. Houve judeus morando em Alexandria, desde a sua fundação em 331 a.C., o primeiro século d.C. os judeus eram maioria em dois dos cinco bairros da cidade. Por volta de 300 a.C., o primeiro Ptolomeu colocou um grupo de judeus na Cirenaica, para ajudar a garantir a lealdade desta província. Um século mais tarde, o rei selêucida Antíoco III, com propósito similar, mudou muitos judeus para a Frigia e a Lídia, e depois que arrebatou a Judéia e a Celessíria dos ptolomeus, encorajou povoamentos judaicos em Antioquia, sua capital, e em outras cidades do seu reino. Na própria Roma, havia uma colônia judaica, mesmo antes da incorporação da Judéia no império em 63 a.C., e ela aumentou em muito nos anos seguintes. Estima-se que no princípio do primeiro século d.C., havia entre 40.000 e 60.000 judeus em Roma – provavelmente tantos quantos na própria Jerusalém. A descoberta e estudo de seis catacumbas judaicas em Roma aumentaram muito nosso conhecimento da vida judaica na cidade. Os judeus de Roma parecem ter se concentrado na margem direita do Tibre (Tastevere), onde a maioria das onze sinagogas atestadas por inscrições provavelmente estava localizada.
A extensão da dispersão judaica, na época dos apóstolos, é evidente na lista de Lucas de “judeus, homens piedosos” que estavam presentes em Jerusalém, para a festa de Pentecostes em 30 d.C., desde “partos, medos, elamitas e os naturais da Mesopotâmia” até visitantes de Roma, no oeste, “tanto judeus como prosélitos” (At. 2.5-11).
Não deixe de ler o próximo artigo: CIDADE NÃO INSIGNIFICANTE
Cidade não Insignificante
Este é o 4º artigo desta série. Os três primeiros são:
01 - Paulo, uma Introdução
02 - O Crescimento de Roma
03 - Os Judeus sob o Domínio Estrangeiro
Província da Cilícia
Quando Paulo foi preso durante sua última visita a Jerusalém (57 d.C.) e levado perante o tribuno militar que comandava a corte auxiliar na fortaleza Antônia, este achou que ele fosse um agitador egípcio que recentemente tentara um tipo de golpe nas proximidades da cidade. Percebendo seu erro, quando ouviu Paulo falando grego, perguntou quem ele era e recebeu a resposta: “Eu sou judeu, natural de Tarso, cidade não insignificante da Cilícia” (At 21.39).
A Cilícia, território que margeava o Mediterrâneo no sudeste da Ásia Menor, abrangia duas regiões bem diferentes. Havia a planície fértil no leste chamada de Cilícia Pedias, entre as montanhas Tauro e o mar; a rota de comércio da Síria para a Ásia Menor passava por ela, atravessando o monte Amano pelas Portas Sírias e cruzando a cadeia de montanhas do Tauro, pelas Portas da Cilícia, para o centro da Ásia Menor. A oeste destas ficava a região costeira montanhosa da Cilícia Tracheia (Cilícia acidentada), onde a cadeia de Tauro desce para o mar.
Nos registros hititas o território da Cilícia é chamado de Kizzuwatna; era ligado ao Império Hitita por um tratado e depois lhe foi incorporado, até a queda deste império 1.200 a.C. Na Ilíada de Homero, os moradores da Cilícia são mencionados como aliados dos troianos; a esposa de Heitor, Andrômaca, era uma princesa da Cilícia. No nono século a.C. a Cilícia caiu sob o controle dos assírios, que a chamavam de Hilakku (provavelmente a “Heleque” de Ez. 27.11). Do começo do sexto século a.C. a Cilícia foi governada por uma sucessão de reis nativos que usavam o título dinástico de Sienese; eles continuaram governando sob a suserania do Império Persa até c. 400 a.C., quando foram substituídos por sátrapas. Em 333 a.C. a Cilícia se tornou parte do império de Alexandre, depois que venceu a batalha decisiva em Isso, no leste do território. Depois da morte dele, a região ficou sob o controle dos selêucidas, apesar de, por algum tempo, a posse de parte da costa da Cilícia Tracheia ser contestada pelos ptolomeus. Quando os romanos forçaram Antíoco III a renunciar à maior parte dos seus domínios na Ásia Menor (188 a.C.), o leste da Cilícia continuou fazendo parte do Império Selêucida por mais algumas décadas, até que a desintegração do domínio selêucida, na segunda metade do segundo século a.C., e o conseqüente uso da Cilícia Tracheia como base de salteadores e piratas levou os romanos a envolver-se cada vez mais diretamente nos assuntos daquela região. Parte da Cilícia ocidental tornou-se província romana em 102 a.C. e, depois da brilhante vitória de Pompeu sobre os piratas em 67 a.C., toda a Cilícia foi submetida à condição de província, tendo Tarso por capital. A partir de 25 a.C., a Cilícia oriental (incluindo Tarso) foi unida, para fins administrativos à Síria, que se tornara província romana sob Pompeu, em 64 a.C. A Cilícia ocidental foi cedida a uma sucessão de reis vassalos. Quando o último destes abdicou em 72 d.C., a Cilícia oriental foi separada da Síria e unida à ocidental para forma a província da Cilícia. Durante toda a vida de Paulo, porém, a região da Cilícia em que ficava sua cidade natal, fez parte da província unificada da Síria-Cilícia, situação implícita na afirmação de Paulo de que, uns três anos após a sua conversão, após uma breve visita a Jerusalém, ele foi “para as regiões da Síria e da Cilícia” (Gl. 1.21).
A Cidade de Tarso
A principal cidade da planície fértil da Cilícia oriental estava localizada à margem do rio Cnido, a uns quinze quilômetros da sua foz e a uns cinqüenta quilômetros das Portas Cilícias (na entrada entre as atuais cidades de Mersin e Adana). Tarso era uma cidade fortificada e importante entreposto comercial antes de 2.000 a.C. No segundo milênio a.C. ela é mencionada em registros hititas como cidade principal de Kizzuwatna. Foi destruída durante a incursão dos Povos do Mar em 1.2000 a.C. e repovoada algum tempo depois pelos gregos. Foi conquistada pelo rei assírio Salmaneser III em 833 a.C. e novamente por Senaqueribe, em 698 a.C. Sob os persas, Tarso foi a capital do reino vassalo e posterior satrapias da Cilícia. Começou a emitir suas próprias moedas no quinto século a.C. em 401 a.C. Ciro, o Jovem, com seus Dez Mil, passou vinte dias na cidade em seu caminho para reclamar o trono persa, e trocou presentes com o rei Sienese, cujo palácio ficava em Tarso.
Alexandre, o Grande, salvou a cidade de ser incendiada pelos persas que retrocediam em 333 a.C. Sob seus sucessores selêucidas ela adotou o nome de Antioquia no Cnido, nome este que consta da nova emissão de moedas no reinado de Antíoco IV (171 a.C. em diante). Esta nova emissão de moedas parece coincidir com a reformulação da constituição da cidade, que lhe concedeu maior autonomia municipal. Em 83 a.C. ela caiu sob o poder de Tigrane I, rei da Armênia, aliado e genro de Mitridates VI, porém passou às mãos dos romanos em resultado das vitórias de Pompeu e tornou-se capital da província da Cilícia, mantendo sua autonomia como cidade livre, em 67 a.C. Cícero residiu na cidade durante seu mandato de procônsul da Cilícia em 51-50 a.C. Quando Júlio César visitou a cidade em 47 a.C., ela adotou o nome Juliópolis em sua honra. Após a morte de César e a derrota do partido que lhe era contrário, em Filipos em 42 a.C., Tarso gozou do favor de Antônio, que controlava as províncias orientais de Roma. Foi ali que aconteceu, em 41 a.C., o celebrado encontro entre Antônio e Cleópatra, quando ela foi levada de barco, rio acima, vestida de Afrodite.
Da barca
Um estranho perfume invisível alcança os sentidos
Dos que estavam no atracadouro. A cidade lançou
Seu povo ao seu encontro; e Antonio,
Entronizado no mercado, estava sozinho,
Assobiando; como que ocioso,
Seu olhar veio a cair sobre Cleópatra,
E abriu uma brecha na natureza.
(Shakespeare – Marco Antonio e Cleópatra – Ato 2, cena 2)
Quando Augusto governava o mundo romano, Tarso gozou de outros privilégios, como a isenção de impostos imperiais. No último período do domínio de Antônio no Oriente Próximo e, alguns anos depois, Tarso tinha sofrido sob a má administração de um governador nomeado por ele, chamado Boécio. Augusto confiou a administração da cidade a um dos seus mais ilustres cidadãos, Atenodoro, o Estóico, que fora seu próprio tutor. Retornando a Tarso, Atenodoro expulsou Boécio e seus companheiros, e reformou a administração civil. Pode ter sido nesta época que foi fixado o valor de 500 dracmas em propriedades, para ser admitido na lista dos cidadãos. Atenodoro e seu sucessor, Nestor, o Acadêmico (tutor de Marcelo, sobrinho de Augusto), também exerceram grande influência cultual em Tarso.
De acordo com o geógrafo Strabo, escrevendo provavelmente nos primeiros anos do primeiro século d.C., o povo de Tarso era ávido por atividades culturais. Eles se dedicavam ao estudo da filosofia, das artes e “de todo o círculo de aprendizado em geral” – toda a “enciclopédia” – a ponto de Tarso, neste aspecto pelo menos, ultrapassar até Atenas e Alexandria, cujas escolas eram freqüentadas mais por visitantes do que por seus próprios cidadãos. Tarso, em resumo, era o que poderíamos chamar de cidade universitária. No entanto, as pessoas não vinham de outros lugares para estudar em suas escolas; os estudantes de Tarso eram originários da cidade, que com freqüência saíam para completar seus estudos em outro lugar e raramente voltavam. Atenodoro foi um dos que saíram, só que retornou mais tarde.
Um quadro menos lisonjeiro de Tarso do que o de Strabo provém de Filostrato em sua obra Vida de Apolônio (o sábio neopitagórico). De acordo com Filostrato, Apolônio, que nasceu no começo da era cristã em Tiana, na Capadócia, veio para Tarso com a idade de catorze anos, para estudar sob o retórico Eutidemo. Ficou muito ligado a seu professor, mas se decepcionou com a atmosfera geral de Tarso que, de modo algum, favorecia os estudos, pois os moradores eram viciados em luxúria, frivolidades e insolência, e “davam mais atenção ao seu linho fino do que os atenienses à sabedoria”. Por isso saiu de Tarso à procura de um ambiente mais propício.
Este relato, porém, não deve ser levado muito a sério; em sua obra, Filostrato foi mais romancista do que biógrafo sério e, escrevendo por volta de 200 d.C., provavelmente estava influenciado por Dio Crisóstomo que, em dois discursos feitos no começo do segundo século d.C., denunciara a falta de seriedade moral dos moradores de Tarso.
A prosperidade de Tarso estava baseada na planície fértil em que se localizava. Tecidos feitos em Tarso, de linho que crescia na planície, são mencionados repetidamente por autores da Antigüidade (como Filostrato). Escritores romanos também fizeram referência a um material local chamado de cilicium, tecido de pelo de cabra, do qual se fazia mantos para proteger contra o frio e a umidade.
Quando Paulo afirmou ser “de cidade não insignificante”, tinha claramente bons motivos para descrever Tarso assim. Se suas palavras significam (como parece ser o caso) que seu nome estava na lista dos cidadãos de Tarso, isto indicaria que ele nasceu em uma família que possuía a cidadania. As exigências para ser cidadão, definidas talvez por Atenodoro, já foram mencionadas. Dio Crisóstomo dá a entender que, ao se organizar assim como uma plutocracia, Tarso barrou os tecelões de linho e outros trabalhadores da cidadania, mas não parece haver motivo por que alguns operários não se teriam qualificado com base nas suas posses. Lucas diz que Paulo era um “fazedor de tendas” (skenopoios), do que podemos entender que ele estava envolvido na fabricação de produtos do cilicium local; contudo, ele parece ter feito parte de uma família bem de vida.
As perguntas sobre sua cidadania de Tarso foram levantadas mais por ele ser judeu do que por ser fazedor de tendas. O grupo de cidadãos como em outras cidades de predominância grega, provavelmente era organizado em tribos ou phylai. Como a vida comum da tribo ou phyle envolvia cerimônias religiosas que teriam sido ofensivas aos judeus, tem sido dito que os cidadãos judeus de Tarso estavam agrupados em uma tribo só deles, solenizada por cerimônias de religião judaica. Isto pode ter realmente sido o caso , apesar de não termos evidências explícitas deste fato. Em muitas cidades gentias os imigrantes judeus viviam como estrangeiros residentes, porém em outras, como em Alexandria, Cirene, Antioquia da Síria, Éfeso e Sardes eles gozavam de direitos de cidadãos, e podem muito bem ter vivido assim como grupo distinto em Tarso.
O próximo artigo desta série é ESTE HOMEM É CIDADÃO ROMANO
01 - Paulo, uma Introdução
02 - O Crescimento de Roma
03 - Os Judeus sob o Domínio Estrangeiro
Província da Cilícia
Quando Paulo foi preso durante sua última visita a Jerusalém (57 d.C.) e levado perante o tribuno militar que comandava a corte auxiliar na fortaleza Antônia, este achou que ele fosse um agitador egípcio que recentemente tentara um tipo de golpe nas proximidades da cidade. Percebendo seu erro, quando ouviu Paulo falando grego, perguntou quem ele era e recebeu a resposta: “Eu sou judeu, natural de Tarso, cidade não insignificante da Cilícia” (At 21.39).
A Cilícia, território que margeava o Mediterrâneo no sudeste da Ásia Menor, abrangia duas regiões bem diferentes. Havia a planície fértil no leste chamada de Cilícia Pedias, entre as montanhas Tauro e o mar; a rota de comércio da Síria para a Ásia Menor passava por ela, atravessando o monte Amano pelas Portas Sírias e cruzando a cadeia de montanhas do Tauro, pelas Portas da Cilícia, para o centro da Ásia Menor. A oeste destas ficava a região costeira montanhosa da Cilícia Tracheia (Cilícia acidentada), onde a cadeia de Tauro desce para o mar.
Nos registros hititas o território da Cilícia é chamado de Kizzuwatna; era ligado ao Império Hitita por um tratado e depois lhe foi incorporado, até a queda deste império 1.200 a.C. Na Ilíada de Homero, os moradores da Cilícia são mencionados como aliados dos troianos; a esposa de Heitor, Andrômaca, era uma princesa da Cilícia. No nono século a.C. a Cilícia caiu sob o controle dos assírios, que a chamavam de Hilakku (provavelmente a “Heleque” de Ez. 27.11). Do começo do sexto século a.C. a Cilícia foi governada por uma sucessão de reis nativos que usavam o título dinástico de Sienese; eles continuaram governando sob a suserania do Império Persa até c. 400 a.C., quando foram substituídos por sátrapas. Em 333 a.C. a Cilícia se tornou parte do império de Alexandre, depois que venceu a batalha decisiva em Isso, no leste do território. Depois da morte dele, a região ficou sob o controle dos selêucidas, apesar de, por algum tempo, a posse de parte da costa da Cilícia Tracheia ser contestada pelos ptolomeus. Quando os romanos forçaram Antíoco III a renunciar à maior parte dos seus domínios na Ásia Menor (188 a.C.), o leste da Cilícia continuou fazendo parte do Império Selêucida por mais algumas décadas, até que a desintegração do domínio selêucida, na segunda metade do segundo século a.C., e o conseqüente uso da Cilícia Tracheia como base de salteadores e piratas levou os romanos a envolver-se cada vez mais diretamente nos assuntos daquela região. Parte da Cilícia ocidental tornou-se província romana em 102 a.C. e, depois da brilhante vitória de Pompeu sobre os piratas em 67 a.C., toda a Cilícia foi submetida à condição de província, tendo Tarso por capital. A partir de 25 a.C., a Cilícia oriental (incluindo Tarso) foi unida, para fins administrativos à Síria, que se tornara província romana sob Pompeu, em 64 a.C. A Cilícia ocidental foi cedida a uma sucessão de reis vassalos. Quando o último destes abdicou em 72 d.C., a Cilícia oriental foi separada da Síria e unida à ocidental para forma a província da Cilícia. Durante toda a vida de Paulo, porém, a região da Cilícia em que ficava sua cidade natal, fez parte da província unificada da Síria-Cilícia, situação implícita na afirmação de Paulo de que, uns três anos após a sua conversão, após uma breve visita a Jerusalém, ele foi “para as regiões da Síria e da Cilícia” (Gl. 1.21).
A Cidade de Tarso
A principal cidade da planície fértil da Cilícia oriental estava localizada à margem do rio Cnido, a uns quinze quilômetros da sua foz e a uns cinqüenta quilômetros das Portas Cilícias (na entrada entre as atuais cidades de Mersin e Adana). Tarso era uma cidade fortificada e importante entreposto comercial antes de 2.000 a.C. No segundo milênio a.C. ela é mencionada em registros hititas como cidade principal de Kizzuwatna. Foi destruída durante a incursão dos Povos do Mar em 1.2000 a.C. e repovoada algum tempo depois pelos gregos. Foi conquistada pelo rei assírio Salmaneser III em 833 a.C. e novamente por Senaqueribe, em 698 a.C. Sob os persas, Tarso foi a capital do reino vassalo e posterior satrapias da Cilícia. Começou a emitir suas próprias moedas no quinto século a.C. em 401 a.C. Ciro, o Jovem, com seus Dez Mil, passou vinte dias na cidade em seu caminho para reclamar o trono persa, e trocou presentes com o rei Sienese, cujo palácio ficava em Tarso.
Alexandre, o Grande, salvou a cidade de ser incendiada pelos persas que retrocediam em 333 a.C. Sob seus sucessores selêucidas ela adotou o nome de Antioquia no Cnido, nome este que consta da nova emissão de moedas no reinado de Antíoco IV (171 a.C. em diante). Esta nova emissão de moedas parece coincidir com a reformulação da constituição da cidade, que lhe concedeu maior autonomia municipal. Em 83 a.C. ela caiu sob o poder de Tigrane I, rei da Armênia, aliado e genro de Mitridates VI, porém passou às mãos dos romanos em resultado das vitórias de Pompeu e tornou-se capital da província da Cilícia, mantendo sua autonomia como cidade livre, em 67 a.C. Cícero residiu na cidade durante seu mandato de procônsul da Cilícia em 51-50 a.C. Quando Júlio César visitou a cidade em 47 a.C., ela adotou o nome Juliópolis em sua honra. Após a morte de César e a derrota do partido que lhe era contrário, em Filipos em 42 a.C., Tarso gozou do favor de Antônio, que controlava as províncias orientais de Roma. Foi ali que aconteceu, em 41 a.C., o celebrado encontro entre Antônio e Cleópatra, quando ela foi levada de barco, rio acima, vestida de Afrodite.
Da barca
Um estranho perfume invisível alcança os sentidos
Dos que estavam no atracadouro. A cidade lançou
Seu povo ao seu encontro; e Antonio,
Entronizado no mercado, estava sozinho,
Assobiando; como que ocioso,
Seu olhar veio a cair sobre Cleópatra,
E abriu uma brecha na natureza.
(Shakespeare – Marco Antonio e Cleópatra – Ato 2, cena 2)
Quando Augusto governava o mundo romano, Tarso gozou de outros privilégios, como a isenção de impostos imperiais. No último período do domínio de Antônio no Oriente Próximo e, alguns anos depois, Tarso tinha sofrido sob a má administração de um governador nomeado por ele, chamado Boécio. Augusto confiou a administração da cidade a um dos seus mais ilustres cidadãos, Atenodoro, o Estóico, que fora seu próprio tutor. Retornando a Tarso, Atenodoro expulsou Boécio e seus companheiros, e reformou a administração civil. Pode ter sido nesta época que foi fixado o valor de 500 dracmas em propriedades, para ser admitido na lista dos cidadãos. Atenodoro e seu sucessor, Nestor, o Acadêmico (tutor de Marcelo, sobrinho de Augusto), também exerceram grande influência cultual em Tarso.
De acordo com o geógrafo Strabo, escrevendo provavelmente nos primeiros anos do primeiro século d.C., o povo de Tarso era ávido por atividades culturais. Eles se dedicavam ao estudo da filosofia, das artes e “de todo o círculo de aprendizado em geral” – toda a “enciclopédia” – a ponto de Tarso, neste aspecto pelo menos, ultrapassar até Atenas e Alexandria, cujas escolas eram freqüentadas mais por visitantes do que por seus próprios cidadãos. Tarso, em resumo, era o que poderíamos chamar de cidade universitária. No entanto, as pessoas não vinham de outros lugares para estudar em suas escolas; os estudantes de Tarso eram originários da cidade, que com freqüência saíam para completar seus estudos em outro lugar e raramente voltavam. Atenodoro foi um dos que saíram, só que retornou mais tarde.
Um quadro menos lisonjeiro de Tarso do que o de Strabo provém de Filostrato em sua obra Vida de Apolônio (o sábio neopitagórico). De acordo com Filostrato, Apolônio, que nasceu no começo da era cristã em Tiana, na Capadócia, veio para Tarso com a idade de catorze anos, para estudar sob o retórico Eutidemo. Ficou muito ligado a seu professor, mas se decepcionou com a atmosfera geral de Tarso que, de modo algum, favorecia os estudos, pois os moradores eram viciados em luxúria, frivolidades e insolência, e “davam mais atenção ao seu linho fino do que os atenienses à sabedoria”. Por isso saiu de Tarso à procura de um ambiente mais propício.
Este relato, porém, não deve ser levado muito a sério; em sua obra, Filostrato foi mais romancista do que biógrafo sério e, escrevendo por volta de 200 d.C., provavelmente estava influenciado por Dio Crisóstomo que, em dois discursos feitos no começo do segundo século d.C., denunciara a falta de seriedade moral dos moradores de Tarso.
A prosperidade de Tarso estava baseada na planície fértil em que se localizava. Tecidos feitos em Tarso, de linho que crescia na planície, são mencionados repetidamente por autores da Antigüidade (como Filostrato). Escritores romanos também fizeram referência a um material local chamado de cilicium, tecido de pelo de cabra, do qual se fazia mantos para proteger contra o frio e a umidade.
Quando Paulo afirmou ser “de cidade não insignificante”, tinha claramente bons motivos para descrever Tarso assim. Se suas palavras significam (como parece ser o caso) que seu nome estava na lista dos cidadãos de Tarso, isto indicaria que ele nasceu em uma família que possuía a cidadania. As exigências para ser cidadão, definidas talvez por Atenodoro, já foram mencionadas. Dio Crisóstomo dá a entender que, ao se organizar assim como uma plutocracia, Tarso barrou os tecelões de linho e outros trabalhadores da cidadania, mas não parece haver motivo por que alguns operários não se teriam qualificado com base nas suas posses. Lucas diz que Paulo era um “fazedor de tendas” (skenopoios), do que podemos entender que ele estava envolvido na fabricação de produtos do cilicium local; contudo, ele parece ter feito parte de uma família bem de vida.
As perguntas sobre sua cidadania de Tarso foram levantadas mais por ele ser judeu do que por ser fazedor de tendas. O grupo de cidadãos como em outras cidades de predominância grega, provavelmente era organizado em tribos ou phylai. Como a vida comum da tribo ou phyle envolvia cerimônias religiosas que teriam sido ofensivas aos judeus, tem sido dito que os cidadãos judeus de Tarso estavam agrupados em uma tribo só deles, solenizada por cerimônias de religião judaica. Isto pode ter realmente sido o caso , apesar de não termos evidências explícitas deste fato. Em muitas cidades gentias os imigrantes judeus viviam como estrangeiros residentes, porém em outras, como em Alexandria, Cirene, Antioquia da Síria, Éfeso e Sardes eles gozavam de direitos de cidadãos, e podem muito bem ter vivido assim como grupo distinto em Tarso.
O próximo artigo desta série é ESTE HOMEM É CIDADÃO ROMANO
Este Homem é Cidadão Romano
Este é o 5º artigo desta série. Os quatro primeiros são:
Os Direitos dos Cidadãos
Em Tarso, portanto, foi que Paulo nasceu, provavelmente na primeira década da era cristã. O privilégio de ter nascido ali e sua condição civil, porém, eram menores do que o fato de ele ter nascido cidadão romano.
O mesmo tribuno militar em Jerusalém a quem Paulo se apresentou como um judeu de Tarso, ficou surpreso, ao ser informado, mais tarde, que Paulo também era cidadão romano. “Dize-me”, ele perguntou a Paulo: “És tu [cidadão] romano?” Quando Paulo respondeu: “Sou”, o tribuno continuou: “A mim me custou grande soma de dinheiro este título de cidadão”. “Pois eu”, redargüiu Paulo, “o tenho por direito de nascimento” (At. 22.27s).
Se Paulo nasceu cidadão romano, seu pai já deve ter sido cidadão romano. A cidadania romana originalmente era restrita a nativos livres da cidade de Roma, mas, à medida que o controle romano da Itália e das terras do Mediterrâneo se ampliava, a cidadania era conferida a várias outras pessoas, de certas províncias seletas, que não eram romanos por nascimento.
Todavia, como uma família judaica de Tarso veio a adquirir esta distinção excepcional? Os membros desta família, na opinião geral, não eram judeus assimilados que se adaptavam ao estilo de vida gentio; isto se pode deduzir da afirmação de Paulo de ser “hebreu de hebreu” (Fp 3.5). Só não sabemos como ele obteve a cidadania romana. A Cilícia caiu na esfera de comando de mais de um general romano no primeiro século a.C. – Pompeu e Antonio, por exemplo – e a concessão de cidadania para pessoas aprovadas estava incluída na autoridade geral (imperium) concedida a estes generais, por lei. Podemos presumir que o pai, o avô ou até o bisavô de Paulo prestou algum serviço especial à causa romana. Foi proposto, por exemplo, que uma fábrica de tendas pode ter sido muito útil para um procônsul em guerra. Entretanto, não temos evidências concretas disto. Uma coisa, porém, é certa: entre os cidadãos e outros residentes de Tarso, os poucos cidadãos romanos, sejam gregos ou judeus de nascimento, devem ter constituído uma elite social.
Como cidadão romano, Paulo tinha três nomes: prenome (praenomen), nome de família (nomen gentile) e nome adicional (cognomen). Destes, conhecemos apenas seu cognomen, Paullus. Se soubéssemos seu nomen gentile, poderíamos ter algum indício das circunstâncias em que a família adquiriu a cidadania, já que novos cidadãos costumavam adotar o nome da família do seu patrono – mas não temos nenhuma indicação neste sentido. O cognomen Paullus pode ter sido escolhido por causa da sua assonância com seu nome judaico Saulo (Sha’ul, em hebraico), que, no Novo Testamento grego, às vezes é escrito Saoul, mas, com mais freqüência, Saulos, de modo a rimar com o grego Paulos.
As circunstâncias em que a família de Paulo adquiriu a cidadania romana são obscuras, e muitas outras questões relacionadas com ela não são menos. Em mais de uma ocasião – por exemplo, em Filipos e, alguns anos mais tarde, em Jerusalém – ele apelou aos seus direitos como cidadão romano. A primeira destas ocasiões foi quando ele protestou por ter sido sumariamente surrado com varas, pelos lictores que ajudavam os principais magistrados em Filipos (uma colônia romana), sem ter tido o julgamento adequado (At 16.37). Na segunda ele invocou seus direitos para evitar ser chicoteado (muito mais cruel do que ser surrado com varas), a que o tribuno militar já dissera que queria submetê-lo, na tentativa de descobrir por que sua presença e seus movimentos nos recintos do templo tinha provocado toda aquela agitação entre o populacho de Jerusalém. Paulo expressou seu protesto diante do Centurião encarregado dos homens que iriam chicoteá-lo; este, alarmado, correu até o tribuno militar: “Que estás para fazer?”, disse-lhe. “Este homem é cidadão romano” (At 22.26). Daí o diálogo entre o tribuno e Paulo, citado no princípio deste capítulo.
Por onde quer que fosse em todo o Império Romano, um cidadão romano podia fazer uso de todos os direitos e privilégios garantidos pela lei romana, além de ser responsável por todas as obrigações civis que a lei romana impunha. Os direitos e privilégios de um cidadão estavam redigidos em uma longa seqüência de decretos – dos quais a compilação mais recente é a Lei Juliana sobre o uso público da força (lex Iulia de ui publica) – que remonta tradicionalmente à Lei Valeriana (lex Valeria) promulgada na criação da república (509 a.C.). Estes direitos e privilégios incluíam um julgamento público justo para o cidadão acusado de algum crime, a isenção de certas formas infames de punição, e proteção contra uma execução sumária. Que não fosse cidadão romano não podia exigir legalmente nenhum destes privilégios.
Registro de Cidadãos
Se, porém, um homem apelava aos seus direitos como cidadão – se dissesse ciuis romanus sum (“sou cidadão romano”) ou seu equivalente em grego – como poderia provar sua alegação? Na falta de qualquer maneira de verificá-la no ato, deve ter sido tentador por alguém que estava contra a parede declará-lo mesmo que não fosse verdade, na esperança de escapar. Naturalmente era uma ofensa capital afirmar falsamente ser cidadão romano, mas como o oficial perante o qual a afirmação era feita poderia certificar-se se ela era verdadeira ou não?
Um novo cidadão podia ter uma cópia do seu certificado de cidadania, atestado por testemunhas; soldados auxiliares recebiam este documento, quando davam baixa, e civis podem ter tido algo parecido. Paulo, no entanto, não era um cidadão recente. Ele podia, mesmo assim, mostrar um díptico, um par de tabletes fechado, que contivesse uma cópia certificada do seu registro de nascimento. Todo filho legítimo de um cidadão romano tinha de ser registrado (ao que parece) no prazo de trinta dias depois do nascimento. Se viesse numa das províncias, seu pai, ou algum agente nomeado oficialmente, fazia uma declaração (professio) perante o governador provincial (praeses prouinciae) no escritório público de registros (tabularium publicum). Nesta sua professio o pai ou seu agente declarava que a criança era cidadã romana; a professio era anotada no registro de declarações (álbum professionum), e o pai ou agente recebia uma cópia, corretamente certificada por testemunhas. Este certificado reproduzia a professio na terceira pessoa, em ordem indireta, e continha as palavras: ciuem romanum esse professus est (“ele [pai ou agente] declarou que ela [a criança] é cidadã romana”). Pode ter sido comum que um cidadão romano que estivesse sempre em viagem levasse este certificado consigo. Neste caso, podemos imaginar Paulo apresentando-o, quando tinha de exigir seus direitos de cidadão. Contudo, será que era possível fazer rapidamente outra cópia, se a original se perdeu? Se Paulo levava a sua consigo, as chances de perdê-la eram consideráveis – por exemplo, na ocasião em que passou uma noite à deriva no mar (2 Co 11.25). Por outro lado, pode ter sido mais usual guardar estes certificados nos arquivos da família; não temos como saber. Há mais um ponto ainda a considerar: este registro de cidadão romano logo depois do nascimento parece ter sido imposto por leis bastante recentes: a lex Aelia Sentia de 4 d.C. e a lex Papia Poppaea de 9 d.C. Se Paulo nasceu um ano ou dois antes da primeira destas leis, teria sido ele registrado desta maneira? O fato de que estas perguntas podem ser feitas, mas não respondidas, mostra quão limitado é nosso conhecimento.
O momento mais importante em que Paulo invocou seus privilégios como cidadão romano aconteceu bem mais tarde, em sua carreira, quando se viu diante do procurador da Judéia para ser julgado e “apelou a César” – isto é, exigiu que seu caso fosse transferido do tribunal provincial para o supremo tribunal em Roma (At. 25.10s). Os detalhes e implicações deste apelo terão nossa atenção no momento oportuno.
No próximo artigo veremos Paulo como HEBREU DE HEBREU.
Em Tarso, portanto, foi que Paulo nasceu, provavelmente na primeira década da era cristã. O privilégio de ter nascido ali e sua condição civil, porém, eram menores do que o fato de ele ter nascido cidadão romano.
O mesmo tribuno militar em Jerusalém a quem Paulo se apresentou como um judeu de Tarso, ficou surpreso, ao ser informado, mais tarde, que Paulo também era cidadão romano. “Dize-me”, ele perguntou a Paulo: “És tu [cidadão] romano?” Quando Paulo respondeu: “Sou”, o tribuno continuou: “A mim me custou grande soma de dinheiro este título de cidadão”. “Pois eu”, redargüiu Paulo, “o tenho por direito de nascimento” (At. 22.27s).
Se Paulo nasceu cidadão romano, seu pai já deve ter sido cidadão romano. A cidadania romana originalmente era restrita a nativos livres da cidade de Roma, mas, à medida que o controle romano da Itália e das terras do Mediterrâneo se ampliava, a cidadania era conferida a várias outras pessoas, de certas províncias seletas, que não eram romanos por nascimento.
Todavia, como uma família judaica de Tarso veio a adquirir esta distinção excepcional? Os membros desta família, na opinião geral, não eram judeus assimilados que se adaptavam ao estilo de vida gentio; isto se pode deduzir da afirmação de Paulo de ser “hebreu de hebreu” (Fp 3.5). Só não sabemos como ele obteve a cidadania romana. A Cilícia caiu na esfera de comando de mais de um general romano no primeiro século a.C. – Pompeu e Antonio, por exemplo – e a concessão de cidadania para pessoas aprovadas estava incluída na autoridade geral (imperium) concedida a estes generais, por lei. Podemos presumir que o pai, o avô ou até o bisavô de Paulo prestou algum serviço especial à causa romana. Foi proposto, por exemplo, que uma fábrica de tendas pode ter sido muito útil para um procônsul em guerra. Entretanto, não temos evidências concretas disto. Uma coisa, porém, é certa: entre os cidadãos e outros residentes de Tarso, os poucos cidadãos romanos, sejam gregos ou judeus de nascimento, devem ter constituído uma elite social.
Como cidadão romano, Paulo tinha três nomes: prenome (praenomen), nome de família (nomen gentile) e nome adicional (cognomen). Destes, conhecemos apenas seu cognomen, Paullus. Se soubéssemos seu nomen gentile, poderíamos ter algum indício das circunstâncias em que a família adquiriu a cidadania, já que novos cidadãos costumavam adotar o nome da família do seu patrono – mas não temos nenhuma indicação neste sentido. O cognomen Paullus pode ter sido escolhido por causa da sua assonância com seu nome judaico Saulo (Sha’ul, em hebraico), que, no Novo Testamento grego, às vezes é escrito Saoul, mas, com mais freqüência, Saulos, de modo a rimar com o grego Paulos.
As circunstâncias em que a família de Paulo adquiriu a cidadania romana são obscuras, e muitas outras questões relacionadas com ela não são menos. Em mais de uma ocasião – por exemplo, em Filipos e, alguns anos mais tarde, em Jerusalém – ele apelou aos seus direitos como cidadão romano. A primeira destas ocasiões foi quando ele protestou por ter sido sumariamente surrado com varas, pelos lictores que ajudavam os principais magistrados em Filipos (uma colônia romana), sem ter tido o julgamento adequado (At 16.37). Na segunda ele invocou seus direitos para evitar ser chicoteado (muito mais cruel do que ser surrado com varas), a que o tribuno militar já dissera que queria submetê-lo, na tentativa de descobrir por que sua presença e seus movimentos nos recintos do templo tinha provocado toda aquela agitação entre o populacho de Jerusalém. Paulo expressou seu protesto diante do Centurião encarregado dos homens que iriam chicoteá-lo; este, alarmado, correu até o tribuno militar: “Que estás para fazer?”, disse-lhe. “Este homem é cidadão romano” (At 22.26). Daí o diálogo entre o tribuno e Paulo, citado no princípio deste capítulo.
Por onde quer que fosse em todo o Império Romano, um cidadão romano podia fazer uso de todos os direitos e privilégios garantidos pela lei romana, além de ser responsável por todas as obrigações civis que a lei romana impunha. Os direitos e privilégios de um cidadão estavam redigidos em uma longa seqüência de decretos – dos quais a compilação mais recente é a Lei Juliana sobre o uso público da força (lex Iulia de ui publica) – que remonta tradicionalmente à Lei Valeriana (lex Valeria) promulgada na criação da república (509 a.C.). Estes direitos e privilégios incluíam um julgamento público justo para o cidadão acusado de algum crime, a isenção de certas formas infames de punição, e proteção contra uma execução sumária. Que não fosse cidadão romano não podia exigir legalmente nenhum destes privilégios.
Registro de Cidadãos
Se, porém, um homem apelava aos seus direitos como cidadão – se dissesse ciuis romanus sum (“sou cidadão romano”) ou seu equivalente em grego – como poderia provar sua alegação? Na falta de qualquer maneira de verificá-la no ato, deve ter sido tentador por alguém que estava contra a parede declará-lo mesmo que não fosse verdade, na esperança de escapar. Naturalmente era uma ofensa capital afirmar falsamente ser cidadão romano, mas como o oficial perante o qual a afirmação era feita poderia certificar-se se ela era verdadeira ou não?
Um novo cidadão podia ter uma cópia do seu certificado de cidadania, atestado por testemunhas; soldados auxiliares recebiam este documento, quando davam baixa, e civis podem ter tido algo parecido. Paulo, no entanto, não era um cidadão recente. Ele podia, mesmo assim, mostrar um díptico, um par de tabletes fechado, que contivesse uma cópia certificada do seu registro de nascimento. Todo filho legítimo de um cidadão romano tinha de ser registrado (ao que parece) no prazo de trinta dias depois do nascimento. Se viesse numa das províncias, seu pai, ou algum agente nomeado oficialmente, fazia uma declaração (professio) perante o governador provincial (praeses prouinciae) no escritório público de registros (tabularium publicum). Nesta sua professio o pai ou seu agente declarava que a criança era cidadã romana; a professio era anotada no registro de declarações (álbum professionum), e o pai ou agente recebia uma cópia, corretamente certificada por testemunhas. Este certificado reproduzia a professio na terceira pessoa, em ordem indireta, e continha as palavras: ciuem romanum esse professus est (“ele [pai ou agente] declarou que ela [a criança] é cidadã romana”). Pode ter sido comum que um cidadão romano que estivesse sempre em viagem levasse este certificado consigo. Neste caso, podemos imaginar Paulo apresentando-o, quando tinha de exigir seus direitos de cidadão. Contudo, será que era possível fazer rapidamente outra cópia, se a original se perdeu? Se Paulo levava a sua consigo, as chances de perdê-la eram consideráveis – por exemplo, na ocasião em que passou uma noite à deriva no mar (2 Co 11.25). Por outro lado, pode ter sido mais usual guardar estes certificados nos arquivos da família; não temos como saber. Há mais um ponto ainda a considerar: este registro de cidadão romano logo depois do nascimento parece ter sido imposto por leis bastante recentes: a lex Aelia Sentia de 4 d.C. e a lex Papia Poppaea de 9 d.C. Se Paulo nasceu um ano ou dois antes da primeira destas leis, teria sido ele registrado desta maneira? O fato de que estas perguntas podem ser feitas, mas não respondidas, mostra quão limitado é nosso conhecimento.
O momento mais importante em que Paulo invocou seus privilégios como cidadão romano aconteceu bem mais tarde, em sua carreira, quando se viu diante do procurador da Judéia para ser julgado e “apelou a César” – isto é, exigiu que seu caso fosse transferido do tribunal provincial para o supremo tribunal em Roma (At. 25.10s). Os detalhes e implicações deste apelo terão nossa atenção no momento oportuno.
No próximo artigo veremos Paulo como HEBREU DE HEBREU.
Hebreu de Hebreus
PAULO - SUA VIDA, SUAS CARTAS E SUA TEOLOGIA
1 – A Herança Judaica de Paulo
De longe mais importante, aos olhos do próprio Paulo, do que Tarso como seu local de nascimento e sua cidadania romana, e de longe mais importante para nossa compreensão dele, era sua herança judaica. Quando, de uma perspectiva cristã, ele olha para trás para as vantagens naturais de que um dia se orgulhou, ele começa: “Circuncidado ao oitavo dia, da linhagem de Israel, da tribo de Benjamim, hebreu de hebreu; quanto à lei, fariseu...” (Fp. 3.5).
Aqui, à declaração de que era “do povo de Israel” – isto é, que era judeu de nascimento – ele acrescenta mais detalhes para mostrar que tipo específico de judeu ele era.
Em primeiro lugar, ele pertencia à tribo de Benjamim (afirmação repetida em Rm 11.1). O território original da tribo de Benjamim ficava imediatamente ao norte da área de Judá, que era muito maior. Jerusalém, pertencente a Judá, formava um enclave dentro de Benjamim. Quando a monarquia foi dividida após a morte de Salomão, Benjamim foi trazido pela atração da gravidade par junto de Judá e Jerusalém, formando o reino do Sul. O povo de Benjamim, naturalmente, tendeu a perder sua identidade tribal, porém alguns, pelo menos, não permitiram que ela se apagasse, e mesmo depois do retorno do exílio, houve repovoamento, em Jerusalém e no território adjacente da Judéia, de pessoa s que continuaram a ser conhecidas separadamente como “filhos de Benjamim” (Ne 11.7-9, 31-36). Provavelmente foi destas que a família de Paulo traçava sua descendência.
A escolha de Saulo como nome judaico pelos pais de Paulo pode estar ligada à sua relação tribal. O benjamita mais destacado na história de Israel foi Saul, o primeiro rei de Israel. Se esta consideração teve peso para os pais de Paulo, é possível perceber uma “coincidência não intencional” no fato de que apenas do livro de Atos sabemos que seu nome judaico era Saulo, enquanto das suas cartas é que sabemos que ele pertencia à tribo de Benjamim. Os primeiros escritores cristãos gostavam de ligar a atuação de Paulo como perseguidor da igreja em seus primórdios com o cumprimento das palavras, na bênção do patriarca Jacó aos seus filhos: “Benjamim é lobo que despedaça...” (Gn 49.27) – porém esta fantasia ingênua nada tem a ver com exegese sóbria.
Em segundo lugar, ele diz que é “hebreu de hebreus”. Nos escritos de Paulo, assim como nos de Lucas, “hebreu" provavelmente é um termo mais especializado do que “israelita” ou “judeu”. Em outra ocasião, em uma referência a visitantes de Corinto que tentaram minar sua posição aos olhos dos seus convertidos, ele diz: “São hebreus? Também eu” – e o contexto indica que “hebreu” tem um sentido mais restrito do que “israelita” ou “descendente de Abraão” (2 Co 11.22). Em Atos 6.1, “hebreus” é usado em contraste com “helenistas”, apesar de ambos serem judeus (nesse caso, judeus discípulos de Jesus, membros da primeira igreja em Jerusalém). A distinção provavelmente era lingüística e cultural: os hebreus, no caso, freqüentavam sinagogas em que o culto era realizado em hebraico, e usavam aramaico como sua língua cotidiana; os helenistas falavam grego e freqüentavam sinagogas em que se liam os textos bíblicos e se recitavam as orações nessa língua. Muitos helenistas em Jerusalém provinham das terras da dispersão, como a Cirenaica, Alexandria, Cilícia e Ásia, e freqüentavam a sinagoga mencionada em Atos 6.9. Na dispersão por todo o mundo greco-romano, por outro lado, os helenistas eram maioria entre os judeus residentes, enquanto os hebreus seriam imigrantes recentes da Palestina ou membros de famílias que faziam questão de preservar seus costumes palestinos. Sabemos, a partir de inscrições em Roma e Corinto, que cada uma dessas cidades tinha uma “sinagoga de hebreus”; essa designação pode indicar um lugar de reunião de judeus palestinos (que provavelmente falavam aramaico), em contraste com outras usadas por judeus de fala grega. Filo de Alexandria, contemporâneo de Paulo, ele mesmo um judeu helenista, usa o termo “hebreu” para indicar os que falam hebraico (e, na literatura judaica em grego do primeiro século d.C., incluindo os escritos do Novo Testamento, “hebraico” em sentido lingüístico é amplo o suficiente para abranger o aramaico).
Naturalmente era de se esperar que um judeu nascido numa cidade de fala grega como Tarso seria um helenista. Paulo pode ser chamado de helenista no sentido de que o grego obviamente não era uma língua estrangeira para ele, mas ele insiste em se chamar de hebreu e não de helenista. Além disso, essa insistência não é baseada em sua criação e educação em Jerusalém; a expressão “hebreu de hebreus” indica que seus pais eram hebreus antes dele. É difícil saber quanto crédito se deve dar à afirmação de Jerônimo de que a família de Paulo provinha de Giscala, na Galiléia. De acordo com o relato de Atos, ele podia se dirigir a uma multidão em Jerusalém em aramaico (At 21.40; 22.2), e do fato de que a voz do céu na estrada para Damasco se dirigiu a ele em aramaico – “em língua aramaica” (At 26.14) – é justo inferir que essa era sua língua materna.
Parece, portanto, que Paulo nasceu em uma família judaica que gozava de direitos de cidadania em uma cidade de língua grega, mas que aramaico, e não grego era a língua falada em sua casa, e talvez também na sinagoga que freqüentava. Diferente de muitos judeus que residiam na Anatólia, essa família observava rigorosamente o estilo de vida judeu e mantinha os vínculos com o país natal. Paulo deve ter tido poucas oportunidades para assimilar a cultura de Tarso durante a sua adolescência; seus pais lhe garantiram uma educação ortodoxa ao providenciar que ele passasse seus anos de formação em Jerusalém.
De acordo com a pontuação mais provável em Atos 22.3, na introdução do seu discurso em aramaico, para uma multidão de judeus hostis no pátio exterior do templo, em Jerusalém, ele era: a) “judeu nascido em Tarso da Cilícia”, mas b) “criado nesta cidade” (Jerusalém) e “instruído aos pés de Gamaliel, segundo a exatidão da lei de nossos antepassados, sendo zeloso para com Deus...”. A última parte desse relato está essencialmente de acordo com sua afirmação mais geral em Gálatas 1.14: “quanto ao judaísmo, avantajava-me a muitos da minha idade, sendo extremamente zeloso das tradições de meus pais.” Ele deve ter ingressado na escola de Gamaliel em algum momento, durante a sua adolescência, mas seus pais cuidaram para que mesmo sua meninice fosse passada sob influências saudáveis, em Jerusalém.
Em terceiro lugar, em suas próprias palavras, Paulo era, “quanto à lei, fariseu” (Fp 3.5). Essa afirmação concorda com Atos 22.3, onde ele diz que foi “instruído aos pés de Gamaliel”, que era o principal fariseu de sua época, e com esta afirmação perante o jovem Agripa: “Vivi fariseu conforme a seita mais severa da nossa religião” (At 26.5). Ainda mais enfática é sua afirmação perante o Sinédrio: “Eu sou fariseu, filho de fariseus!” (At 23.6). O sentido natural disso é que seu pai ou antepassados mais remotos tinha ligação com os fariseus; é apenas possível, se bem que menos provável, que “filho de fariseus” significa “aluno de fariseu”.
2 – Os Fariseus
Quem, então, eram os fariseus? Eles são mencionados, primeira vez, com esse nome, em meados do segundo século a.C. Em sua narrativa do governo de Jônatas (160-143 a.C.), irmão e sucessor de Judas Macabeu, Josefo diz que nessa época havia três escolas de pensamento entre os judeus: os fariseus, os saduceus e os essênios, dos quais estes últimos eram adeptos rígidos da predestinação, e os saduceus insistiam que todas as coisas aconteciam de acordo com o livre arbítrio de cada um, enquanto os fariseus ocupavam uma posição intermediária que abria espaço para a predestinação divina e a escolha humana. Esse provavelmente não era o ponto mais importante em que os três grupos diferiam uns dos outros, mas Josefo gostava de falar dos paridos religiosos judaicos, como se fossem escolas de filosofia grega, e chamava a atenção para aqueles traços em que ele achava que os leitores gregos e romanos estariam interessados.
Mais adiante ele diz que o sobrinho de Jônatas, João Hircano, que governou a Judéia por mais ou menos trinta anos (134-104 a.C.), no começo foi um discípulo dos fariseus, mas depois se ofendeu com a franqueza de um deles e rompeu com eles, passando a aliar-se com os rivais deles, os saduceus. A partir daí os fariseus formaram um tipo de partido de oposição por várias décadas, sofrendo dura repressão, especialmente às mãos de Alexandre Janeu (103-76 a.C.).
Josefo não delineia os antecedentes espirituais dos fariseus, mas é bem provável que eles surgiram entre as fileiras dos hasîdîm ou “espirituais”, que são chamados “asideus” no livro dos Macabeus (1 Macabeus 2.42; 7.14; e 2 Macabeus 14.6). A origem desses asideus provavelmente deve ser procurada entre o povo fiel a Deus na Judéia que, algumas décadas após o retorno do exílio, agruparam-se com o propósito de se encorajar mutuamente, no estudo e na prática da lei sagrada, em meio ao que eles entendiam como declínio moral e religioso. No livro de Malaquias somos informados de que “os que temiam ao Senhor falavam uns aos outros; o Senhor atentava e ouvia; havia um memorial escrito diante dele para os que temiam ao Senhor e para os que se lembram do seu nome. Eles serão para mim particular tesouro, naquele dia que prepararei, diz o Senhor dos Exércitos; poupá-los-ei como um homem poupa a seu filho que o serve” (Ml 3.16-17). E estes cujos nomes foram registrados no livro como memorial não apenas seriam poupados naquele dia vindouro, mas também seriam os executores da sua sentença contra os ímpios: “Para vós outros que temeis o meu nome, nascerá o sol da justiça, trazendo salvação nas suas asas [...]. Pisareis os perversos, porque se farão cinzas debaixo das plantas dos vossos pés, naquele dia prepararei, diz o Senhor dos Exércitos". (Ml 4.2-3).
A devoção apaixonada desse povo à lei do seu Deus é ilustrada muito bem no Salmo 119, composição de alguém que suportou dificuldades e perseguições, por causa da sua lealdade aos “testemunhos” divinos, porém continua a considerá-los uma luz para o seu caminho e mais doces do que mel ao paladar. Eles deploravam a intromissão de costumes helenistas na vida judaica, sob os ptolomeus e selêucidas, e eram desprezados como estraga-prazeres antiquados pela geração mais jovem, mesmo nas famílias sacerdotais, que abraçou com fervor a nova moda. Quando, porém, o helenismo mostrou sua face inaceitável, na ação de Antíoco Epifânio que prometia extinguir a identidade religiosa e nacional dos judeus, foram os asideus que demonstraram ser os patriotas mais autênticos. Alguns deles opuseram resistência ferrenha às forças selêucidas, e conquistaram a coroa do martírio. Outros, talvez a maioria, uniram-se à família dos asmoneus – Judas Macabeu e seus irmãos – e a seus seguidores, quando elevaram o padrão da revolta e iniciaram a guerra de guerrilhas contra os selêucidas.
A guerra de guerrilhas foi mais bem sucedida do que era esperado. O rei e seus conselheiros perceberam que sua política para a Judéia fora equivocada, e perto do fim de 164 a.C. a reverteram, permitindo que os judeus novamente praticassem sua religião ancestral e restaurassem o templo em Jerusalém, para o culto ao Deus de Israel. Muitos asideus estavam dispostos a contentar-se com isso, uma vez que a prática livre da sua religião era o objetivo da sua resistência. Eles não romperam imediatamente sua aliança com os asmoneus, mas não colaboraram mais com tanto entusiasmo na luta pela independência, especialmente depois de ver que essa luta implicaria o crescimento do poder asmoneu. Quando Jônatas aceitou o sumo sacerdócio em 152 a.C. das mãos de um pretendente ao trono selêucida, um grupo de asideus – que acabou formando a comunidade de Qumran – ficou tão furioso com essa usurpação da dignidade ancestral da casa de Zadoque que se recusou a reconhecê-lo como tal e até a adorar no templo, que fora profanado pela ação ilegítima do próprio Jônatas e dos seus herdeiros e sucessores.
Quando a independência política foi afinal obtida, o sumo sacerdócio foi confirmado para a família dos asmoneus, pelo decreto de uma assembléia popular. Muitos asideus, porém, não estavam contentes com isso, apesar de não poderem ir tão longe como a minoria intransigente que optou sair da vida pública, por causa da sua objeção à posse do ofício sagrado pelos asmoneus. Josefo, ao falar do rompimento entre os fariseus e João Hircano, diz que o que ofendeu João mortalmente foi a proposta de que deveria contentar-se com a liderança política e militar e desistir do sumo sacerdócio.
Será que os fariseus, então, eram asideus? Parece que sim, ou, pelo menos, que surgiram dentro da comunidade dos asideus e devem ser mesmo considerados o principal sucessor dela. A designação “fariseus” deriva da raiz hebraica e aramaica que significa “separados”. A palavra grega pharisaioi evidentemente é uma transliteração do aramaico p’rîsayyâ, “os separados”. Muitos entendem que eles receberam esse nome, por terem se afastado da aliança com os asmoneus, mas talvez o sentido seja mais geral, indicando sua política de separação total de tudo o que poderia trazer impureza moral ou cerimonial. Essa separação era o outro lado da santidade a que eles se sentiam especialmente chamados. Isso é expresso em um comentário rabínico posterior sobre Levítico, que amplia a instrução: “Santos sereis, porque eu, o Senhor, vosso Deus, sou santo” (Lv 19.2): “Assim como eu sou santo, vocês também precisam ser santos; como eu estou separado (heb. parûs), vocês também precisam ser separados (heb. p’rûsîm)".
Os fariseus tomavam muito cuidado para guardar a lei do sábado e as restrições de alimentos, perpetuando assim os princípios dos judeus que foram martirizados por Antíoco IV, e sofreram torturas e morte para não apostatar nessas coisas. Davam escrupulosamente o dízimo do produto da terra – não apenas cereais, vinho e azeite, mas até as ervas da horta – e se recusavam a comer alimentos sujeitos ao dízimo, enquanto este não estivesse pago.
Em seu estudo da lei, eles elaboraram um conjunto de interpretações e aplicações que, com o tempo, adquiriu uma validade igual à da lei escrita, e sua origem, numa ficção jurídica, era atribuída a Moisés no monte Sinai, junto com a lei escrita. O propósito dessa lei oral – a “tradição dos anciãos”, como é chamada nos evangelhos (Mc 7.5) – era adaptar as prescrições antigas às situações diferentes, depois de tanto tempo, e impedir que fossem descartadas como obsoletas e impraticáveis. Havia diferentes escolas de interpretação entre os fariseus, mas todos concordavam com a necessidade aplicar a lei escrita nos termos da lei oral. Isso os distinguia dos seus principais opositores teológicos, os saduceus, que acreditavam (pelo menos em teoria) que a lei escrita deveria ser preservada e aplicada sem modificações, não importa o peso que sua imposição literal colocaria sobre as pessoas.
Não temos informações suficientes sobre a teologia dos saduceus, porque nenhum relato de primeira mão chegou até nós. O que sabemos apenas tem relação com os pontos em que diferiam dos fariseus. Sabemos, por exemplo, que, diferente dos fariseus, eles diziam que “não havia ressurreição, nem anjo, nem espíritos” (At 23.8). A fé na ressurreição, mantida pelos fariseus, é atestada ente os martirizados por Antíoco; ela deve ser distinguida da idéia (expressa, por exemplo, por Bem Siraque) de que o tipo mais desejável de imortalidade era a lembrança pela posteridade das virtudes de um homem bom, especialmente quando eram reproduzidas nos seus descendentes. Os saduceus podem muito bem ter considerado essa idéia mais coerente com os primeiros textos – apesar de alguns deles ficaram surpresos, certo dia, em Jerusalém, por volta do ano 30 d.C., ao ouvir um visitante da Galiléia deduzir a esperança da ressurreição da declaração divina feita a Moisés da sarça ardente. Quanto à descrença dos saduceus em anjos e demônios, o que eles rejeitavam, foi provavelmente o conceito de hierarquias opostas de espíritos bons e maus, cada uma encabeçada por sete arcanjos e arquidemônios conhecidos pelo nome. Eles podem ter reconhecido uma afinidade entre essas crenças dos fariseus e as da religião de Zoroastro; realmente, um estudioso chegou a sugerir que “fariseu” significava originalmente “persa” e que era uma designação pejorativa, inventada pelos saduceus, para seus opositores. Isso é improvável, mas pode-se imaginar que os saduceus, à guisa de sátira, reinterpretaram “fariseus” como “persas”. Os saduceus certamente pensavam que eles é que preservavam a religião dos antigos, e viam os fariseus como inovadores perigosos – modernistas, para ser claro.
Os fariseus ascenderam a uma posição de influência, quando Alexandre Janeu foi sucedido por sua viúva Salomé Alexandra; seu reinado de nove anos (76-67 a.C.) foi lembrado na tradição rabínica como uma pequena idade de ouro. Herodes lhes deu uma atenção respeitosa na primeira parte do seu reinado; ainda no ano 17 a.C., ele os liberou de um juramento de lealdade que exigia dos seus demais súditos. Pouco depois disso, porém, ele começou a se ressentir da teimosia deles, e, ao impor um novo juramento de lealdade em 7 a.C., a si mesmo e a Augusto, multou os fariseus - a grande maioria – que se recusaram a jurar. Quando, perto do fim da sua vida, alguns discípulos de fariseus, instigados por seus professores, derrubaram a grande águia dourada que ele colocara sobre a entrada do templo, ele se vingou de modo atroz.
Sob a administração romana, os fariseus estavam representados no Sinédrio. Apesar de eles serem minoria, segundo Josefo, sua influência sobre o povo era tal que a maioria dos saduceus e sumo sacerdote era obrigada a respeitar as opiniões deles. Muitos escribas, talvez a maioria – os expositores profissionais da lei e dos profetas – eram discípulos dos fariseus e difundiam as interpretações deles.
Os fariseus se organizavam em grupos locais. Esses grupos eram chamados de habûrah; cada membro de um habûrah era um haber dos outros membros. Josefo, que nos diz que desde os seus dezenove anos de idade ele organizou sua vida segundo as regras dos fariseus, estima seu número em mais ou menos 6.000.
Por causa da preocupação meticulosa deles com as leis de pureza e o dízimo, eles não conseguiam conviver facilmente com aqueles, mesmo entre os judeus que não insistiam tanto nesses particulares como eles. Isso dizia respeito à grande maioria da população judaica da Palestina, camponeses e artesãos, que não podiam dedicar tanto tempo ou interesse ao estudo dessas leis como os fariseus. Estes, por isso, costumavam falar com desprezo do “povo da terra”, como os chamavam, porque essas pessoas, na opinião deles, eram incapazes da verdadeira religiosidade. Por outro lado, os fariseus eram criticados, por serem muito frouxos em sua busca da santidade pelos sectários de Qumran que promoveram sua própria “separação”, a ponto de se isolar (para não dizer enclausurar) e, com Isaías 30.10 na cabeça, diziam que os fariseus “procuravam coisas aprazíveis” ou (como a frase também pode ser traduzida) “davam interpretações aprazíveis”.
Um a certa idéia de família caracterizava certamente o movimento dos fariseus, mas havia uma ampla variedade dentro dele – em parte conseqüência das diversas escolas de interpretação, e em parte de diferentes temperamentos e motivações. Uma passagem do Talmud, citada com freqüência, se bem que bastante posterior, faz distinção entre sete tipos de fariseus, dos quais apenas um, o fariseu que é fariseu por amor a Deus, recebe elogios sem restrições.
3 – O Farisaísmo nos Dias de Paulo
Nos primórdios da era cristã havia duas escolas principais de interpretação legal, fundadas respectivamente por Shammai e Hillel. À escola de Shammai tradicionalmente é atribuída uma interpretação mais rígida do que à escola de Hillel – não apenas na aplicação das leis individuais, mas também na postura, em relação à lei como um todo. Os discípulos de Shammai consideravam a quebra da lei (por ação ou omissão) uma quebra da lei como tal, enquanto os discípulos de Hillel ensinavam que o julgamento divino estava relacionado à preponderância do bem ou do mal, na vida inteira da pessoa.
Uma das afirmações mais bem conhecidas de Hillel é sua resposta a um homem que lhe pediu para resumir toda a lei no menor número possível de palavras. Hillel disse: “Aquilo que para você é detestável, não o faça aos outros, isso é toda a lei, todo o resto é comentário”. Essa citação da regra de ouro negativa como resumo da lei podia ser interpretada de maneiras que muitos fariseus teriam considerado perigosas. Mesmo se não foi essa a intenção de Hillel, pode ter encorajado alguém a argumentar, ao defrontar-se com um mandamento específico da lei, que este era obrigatório apenas até o ponto de evitar o sofrimento do próximo ou promovia o seu bem. Isso, segundo a opinião prevalente entre os rabinos, introduzia um critério subjetivo ilícito; era muito melhor que as pessoas, ao serem confrontadas com um mandamento da lei, obedecessem a ela simplesmente porque era um mandamento do Santo: não há porque perguntar por quê.
Que tipo de fariseu era Paulo? A pergunta não é fácil de responder. De acordo com Atos 22.3, ele foi instruído na escola de Gamaliel, e a tradição posterior faz de Gamaliel o sucessor de Hillel e líder da sua escola, e às vezes até seu filho ou neto. Mas as tradições mais antigas que refletem algumas recordações diretas do homem e seu ensino não estabelecem nenhum vínculo entre ele e a escola de Hillel. Em vez disso, falam de pessoas que pertenciam à escola de Gamaliel, como se ele tivesse fundado a sua própria.
Há certa dificuldade em distinguir as tradições sobre esse Gamaliel daquelas sobre um professor posterior com o mesmo nome (Gamaliel II, c. 100 d.C.), mas as tradições que pressupõe que o templo ainda estava de pé, certamente se referem ao Gamaliel anterior. Dizia-se que, “quando Rabban Gamaliel mais velho morreu, a glória da Tora cessou, e pureza e separação morreram” – o que quase equivale a dizer que ele foi o último dos verdadeiros fariseus, já que “separação” (heb. p’rîsût) vem da mesma raiz de “fariseus” e pode até ser traduzido por “farisaísmo”. Ente as regulamentações que lhe são atribuídas, está uma que liberaliza a lei do novo casamento após o divórcio.
Tanto nas tradições rabínicas como no Novo Testamento Gamaliel aparece como membro do Sinédrio. Lucas relata que, no estágio inicial da igreja em Jerusalém, os apóstolos foram acusados perante esse tribunal de desobedecer a sua orientação anterior de não ensinar publicamente no nome de Jesus. Quando alguns membros do tribunal queriam tomar medidas extremas contra eles, “um fariseu, chamado Gamaliel, mestre da lei, acatado por todo o povo” (At 5.34), lembrou seus colegas de outros movimentos no passado recente que pareciam ser perigosos por um tempo curto, mas logo entraram em colapso. E ele acrescentou (v. 38s):
"Agora, vos digo: dai de mão a estes homens, deixai-os; porque, se este conselho ou esta obra vem de homens, perecerá; mas, se é de Deus, não podereis destruí-los, para que não sejais, porventura, achados lutando contra Deus".
Isso certamente é doutrina típica dos fariseus. As pessoas podem desobedecer a Deus, mas sua vontade triunfará mesmo assim. A vontade do ser humano não é cerceada, mas o que ele quer é superado por Deus, quando realiza os seus propósitos. Nas palavras de um rabino posterior, o fabricante de sandálias Yohanan, “todo ajuntamento em prol do céu será confirmado, mas o que não é em prol do céu no fim não será confirmado”. Que Gamaliel seguiu a linha atribuída a ele por Lucas é o que devíamos esperar.
No entanto, se essa era a linha de Gamaliel, certamente não era a de Paulo. Na maioria das questões, por exemplo, na esperança da ressurreição e nos métodos de exegese bíblica, Paulo provavelmente foi um aluno apto e um seguidor fiel do seu professor. Até se chegou a pensar que um aluno de Gamaliel do qual não se diz o nome, mas que apresentou “descaramento em questões de estudo” e tentou refutar seu professor, era ninguém menos que Paulo. Se esse é o caso (o que é bastante incerto), então a tradição reflete a desaprovação com o posterior abandono do caminho rabínico por Paulo; não preserva uma recordação da conduta de Paulo, enquanto esteve aos pés de Gamaliel. Em um aspecto, porém, Paulo desviou-se do exemplo do seu mestre: ele repudiou o a idéia de que uma política de contemporização era a mais adequada em relação aos discípulos de Jesus. Em sua cabeça, esse novo movimento constituía uma ameaça mais mortal a tudo o que ele aprendera a valorizar do que Gamaliel parecia capaz de entender. Além disso, o temperamento de Paulo parece ter sido bem diferente do de Gamaliel: em contraste com a paciência e tolerância de estadista de Gamaliel, Paulo era caracterizado, em suas próprias palavras, por uma superabundância de zelo – que, realmente, ele nunca perdeu de todo.
Como o objeto do seu zelo eram as tradições dos ancestrais – a antiga lei de Israel e sua interpretação como era ensinada na escola de Gamaliel – não devemos ficar surpresos de saber que ele estava insatisfeito com a idéia dos seguidores de Hillel de que um mera preponderância do bem sobre o mal, na vida de alguém, era suficiente para lhe conseguir um veredito favorável, no dia do julgamento. Nesse ponto, pelo menos, ele parece ter se inclinado mais para a posição dos seguidores de Shammai de que a lei tinha de ser obedecida em sua totalidade. Que essa era a postura de Paulo está implícito mais tarde, quando ele diz aos seus convertidos na Galácia, que estavam sendo pressionados a adotar certas exigências legais do judaísmo, que eles não podiam pensar que, se escolhessem essa maneira de ser aceitos por Deus, podiam escolher os que quisessem entre os mandamentos divinos: “Testifico a todo homem que se deixa circuncidar, que está obrigado a guardar toda a lei” (Gl 5.3). Essa atitude em relação à lei determinou a atitude hostil de Paulo em relação aos seguidores de Jesus e seu ensino.
O próximo artigo desta série é QUANDO VEIO A PLENITUDE DO TEMPO
RETORNAR AO ÍNDICE DE PAULO - SUA VIDA, SUAS CARTAS E SUA TEOLOGIA
1 – A Herança Judaica de Paulo
De longe mais importante, aos olhos do próprio Paulo, do que Tarso como seu local de nascimento e sua cidadania romana, e de longe mais importante para nossa compreensão dele, era sua herança judaica. Quando, de uma perspectiva cristã, ele olha para trás para as vantagens naturais de que um dia se orgulhou, ele começa: “Circuncidado ao oitavo dia, da linhagem de Israel, da tribo de Benjamim, hebreu de hebreu; quanto à lei, fariseu...” (Fp. 3.5).
Aqui, à declaração de que era “do povo de Israel” – isto é, que era judeu de nascimento – ele acrescenta mais detalhes para mostrar que tipo específico de judeu ele era.
Em primeiro lugar, ele pertencia à tribo de Benjamim (afirmação repetida em Rm 11.1). O território original da tribo de Benjamim ficava imediatamente ao norte da área de Judá, que era muito maior. Jerusalém, pertencente a Judá, formava um enclave dentro de Benjamim. Quando a monarquia foi dividida após a morte de Salomão, Benjamim foi trazido pela atração da gravidade par junto de Judá e Jerusalém, formando o reino do Sul. O povo de Benjamim, naturalmente, tendeu a perder sua identidade tribal, porém alguns, pelo menos, não permitiram que ela se apagasse, e mesmo depois do retorno do exílio, houve repovoamento, em Jerusalém e no território adjacente da Judéia, de pessoa s que continuaram a ser conhecidas separadamente como “filhos de Benjamim” (Ne 11.7-9, 31-36). Provavelmente foi destas que a família de Paulo traçava sua descendência.
A escolha de Saulo como nome judaico pelos pais de Paulo pode estar ligada à sua relação tribal. O benjamita mais destacado na história de Israel foi Saul, o primeiro rei de Israel. Se esta consideração teve peso para os pais de Paulo, é possível perceber uma “coincidência não intencional” no fato de que apenas do livro de Atos sabemos que seu nome judaico era Saulo, enquanto das suas cartas é que sabemos que ele pertencia à tribo de Benjamim. Os primeiros escritores cristãos gostavam de ligar a atuação de Paulo como perseguidor da igreja em seus primórdios com o cumprimento das palavras, na bênção do patriarca Jacó aos seus filhos: “Benjamim é lobo que despedaça...” (Gn 49.27) – porém esta fantasia ingênua nada tem a ver com exegese sóbria.
Em segundo lugar, ele diz que é “hebreu de hebreus”. Nos escritos de Paulo, assim como nos de Lucas, “hebreu" provavelmente é um termo mais especializado do que “israelita” ou “judeu”. Em outra ocasião, em uma referência a visitantes de Corinto que tentaram minar sua posição aos olhos dos seus convertidos, ele diz: “São hebreus? Também eu” – e o contexto indica que “hebreu” tem um sentido mais restrito do que “israelita” ou “descendente de Abraão” (2 Co 11.22). Em Atos 6.1, “hebreus” é usado em contraste com “helenistas”, apesar de ambos serem judeus (nesse caso, judeus discípulos de Jesus, membros da primeira igreja em Jerusalém). A distinção provavelmente era lingüística e cultural: os hebreus, no caso, freqüentavam sinagogas em que o culto era realizado em hebraico, e usavam aramaico como sua língua cotidiana; os helenistas falavam grego e freqüentavam sinagogas em que se liam os textos bíblicos e se recitavam as orações nessa língua. Muitos helenistas em Jerusalém provinham das terras da dispersão, como a Cirenaica, Alexandria, Cilícia e Ásia, e freqüentavam a sinagoga mencionada em Atos 6.9. Na dispersão por todo o mundo greco-romano, por outro lado, os helenistas eram maioria entre os judeus residentes, enquanto os hebreus seriam imigrantes recentes da Palestina ou membros de famílias que faziam questão de preservar seus costumes palestinos. Sabemos, a partir de inscrições em Roma e Corinto, que cada uma dessas cidades tinha uma “sinagoga de hebreus”; essa designação pode indicar um lugar de reunião de judeus palestinos (que provavelmente falavam aramaico), em contraste com outras usadas por judeus de fala grega. Filo de Alexandria, contemporâneo de Paulo, ele mesmo um judeu helenista, usa o termo “hebreu” para indicar os que falam hebraico (e, na literatura judaica em grego do primeiro século d.C., incluindo os escritos do Novo Testamento, “hebraico” em sentido lingüístico é amplo o suficiente para abranger o aramaico).
Naturalmente era de se esperar que um judeu nascido numa cidade de fala grega como Tarso seria um helenista. Paulo pode ser chamado de helenista no sentido de que o grego obviamente não era uma língua estrangeira para ele, mas ele insiste em se chamar de hebreu e não de helenista. Além disso, essa insistência não é baseada em sua criação e educação em Jerusalém; a expressão “hebreu de hebreus” indica que seus pais eram hebreus antes dele. É difícil saber quanto crédito se deve dar à afirmação de Jerônimo de que a família de Paulo provinha de Giscala, na Galiléia. De acordo com o relato de Atos, ele podia se dirigir a uma multidão em Jerusalém em aramaico (At 21.40; 22.2), e do fato de que a voz do céu na estrada para Damasco se dirigiu a ele em aramaico – “em língua aramaica” (At 26.14) – é justo inferir que essa era sua língua materna.
Parece, portanto, que Paulo nasceu em uma família judaica que gozava de direitos de cidadania em uma cidade de língua grega, mas que aramaico, e não grego era a língua falada em sua casa, e talvez também na sinagoga que freqüentava. Diferente de muitos judeus que residiam na Anatólia, essa família observava rigorosamente o estilo de vida judeu e mantinha os vínculos com o país natal. Paulo deve ter tido poucas oportunidades para assimilar a cultura de Tarso durante a sua adolescência; seus pais lhe garantiram uma educação ortodoxa ao providenciar que ele passasse seus anos de formação em Jerusalém.
De acordo com a pontuação mais provável em Atos 22.3, na introdução do seu discurso em aramaico, para uma multidão de judeus hostis no pátio exterior do templo, em Jerusalém, ele era: a) “judeu nascido em Tarso da Cilícia”, mas b) “criado nesta cidade” (Jerusalém) e “instruído aos pés de Gamaliel, segundo a exatidão da lei de nossos antepassados, sendo zeloso para com Deus...”. A última parte desse relato está essencialmente de acordo com sua afirmação mais geral em Gálatas 1.14: “quanto ao judaísmo, avantajava-me a muitos da minha idade, sendo extremamente zeloso das tradições de meus pais.” Ele deve ter ingressado na escola de Gamaliel em algum momento, durante a sua adolescência, mas seus pais cuidaram para que mesmo sua meninice fosse passada sob influências saudáveis, em Jerusalém.
Em terceiro lugar, em suas próprias palavras, Paulo era, “quanto à lei, fariseu” (Fp 3.5). Essa afirmação concorda com Atos 22.3, onde ele diz que foi “instruído aos pés de Gamaliel”, que era o principal fariseu de sua época, e com esta afirmação perante o jovem Agripa: “Vivi fariseu conforme a seita mais severa da nossa religião” (At 26.5). Ainda mais enfática é sua afirmação perante o Sinédrio: “Eu sou fariseu, filho de fariseus!” (At 23.6). O sentido natural disso é que seu pai ou antepassados mais remotos tinha ligação com os fariseus; é apenas possível, se bem que menos provável, que “filho de fariseus” significa “aluno de fariseu”.
2 – Os Fariseus
Quem, então, eram os fariseus? Eles são mencionados, primeira vez, com esse nome, em meados do segundo século a.C. Em sua narrativa do governo de Jônatas (160-143 a.C.), irmão e sucessor de Judas Macabeu, Josefo diz que nessa época havia três escolas de pensamento entre os judeus: os fariseus, os saduceus e os essênios, dos quais estes últimos eram adeptos rígidos da predestinação, e os saduceus insistiam que todas as coisas aconteciam de acordo com o livre arbítrio de cada um, enquanto os fariseus ocupavam uma posição intermediária que abria espaço para a predestinação divina e a escolha humana. Esse provavelmente não era o ponto mais importante em que os três grupos diferiam uns dos outros, mas Josefo gostava de falar dos paridos religiosos judaicos, como se fossem escolas de filosofia grega, e chamava a atenção para aqueles traços em que ele achava que os leitores gregos e romanos estariam interessados.
Mais adiante ele diz que o sobrinho de Jônatas, João Hircano, que governou a Judéia por mais ou menos trinta anos (134-104 a.C.), no começo foi um discípulo dos fariseus, mas depois se ofendeu com a franqueza de um deles e rompeu com eles, passando a aliar-se com os rivais deles, os saduceus. A partir daí os fariseus formaram um tipo de partido de oposição por várias décadas, sofrendo dura repressão, especialmente às mãos de Alexandre Janeu (103-76 a.C.).
Josefo não delineia os antecedentes espirituais dos fariseus, mas é bem provável que eles surgiram entre as fileiras dos hasîdîm ou “espirituais”, que são chamados “asideus” no livro dos Macabeus (1 Macabeus 2.42; 7.14; e 2 Macabeus 14.6). A origem desses asideus provavelmente deve ser procurada entre o povo fiel a Deus na Judéia que, algumas décadas após o retorno do exílio, agruparam-se com o propósito de se encorajar mutuamente, no estudo e na prática da lei sagrada, em meio ao que eles entendiam como declínio moral e religioso. No livro de Malaquias somos informados de que “os que temiam ao Senhor falavam uns aos outros; o Senhor atentava e ouvia; havia um memorial escrito diante dele para os que temiam ao Senhor e para os que se lembram do seu nome. Eles serão para mim particular tesouro, naquele dia que prepararei, diz o Senhor dos Exércitos; poupá-los-ei como um homem poupa a seu filho que o serve” (Ml 3.16-17). E estes cujos nomes foram registrados no livro como memorial não apenas seriam poupados naquele dia vindouro, mas também seriam os executores da sua sentença contra os ímpios: “Para vós outros que temeis o meu nome, nascerá o sol da justiça, trazendo salvação nas suas asas [...]. Pisareis os perversos, porque se farão cinzas debaixo das plantas dos vossos pés, naquele dia prepararei, diz o Senhor dos Exércitos". (Ml 4.2-3).
A devoção apaixonada desse povo à lei do seu Deus é ilustrada muito bem no Salmo 119, composição de alguém que suportou dificuldades e perseguições, por causa da sua lealdade aos “testemunhos” divinos, porém continua a considerá-los uma luz para o seu caminho e mais doces do que mel ao paladar. Eles deploravam a intromissão de costumes helenistas na vida judaica, sob os ptolomeus e selêucidas, e eram desprezados como estraga-prazeres antiquados pela geração mais jovem, mesmo nas famílias sacerdotais, que abraçou com fervor a nova moda. Quando, porém, o helenismo mostrou sua face inaceitável, na ação de Antíoco Epifânio que prometia extinguir a identidade religiosa e nacional dos judeus, foram os asideus que demonstraram ser os patriotas mais autênticos. Alguns deles opuseram resistência ferrenha às forças selêucidas, e conquistaram a coroa do martírio. Outros, talvez a maioria, uniram-se à família dos asmoneus – Judas Macabeu e seus irmãos – e a seus seguidores, quando elevaram o padrão da revolta e iniciaram a guerra de guerrilhas contra os selêucidas.
A guerra de guerrilhas foi mais bem sucedida do que era esperado. O rei e seus conselheiros perceberam que sua política para a Judéia fora equivocada, e perto do fim de 164 a.C. a reverteram, permitindo que os judeus novamente praticassem sua religião ancestral e restaurassem o templo em Jerusalém, para o culto ao Deus de Israel. Muitos asideus estavam dispostos a contentar-se com isso, uma vez que a prática livre da sua religião era o objetivo da sua resistência. Eles não romperam imediatamente sua aliança com os asmoneus, mas não colaboraram mais com tanto entusiasmo na luta pela independência, especialmente depois de ver que essa luta implicaria o crescimento do poder asmoneu. Quando Jônatas aceitou o sumo sacerdócio em 152 a.C. das mãos de um pretendente ao trono selêucida, um grupo de asideus – que acabou formando a comunidade de Qumran – ficou tão furioso com essa usurpação da dignidade ancestral da casa de Zadoque que se recusou a reconhecê-lo como tal e até a adorar no templo, que fora profanado pela ação ilegítima do próprio Jônatas e dos seus herdeiros e sucessores.
Quando a independência política foi afinal obtida, o sumo sacerdócio foi confirmado para a família dos asmoneus, pelo decreto de uma assembléia popular. Muitos asideus, porém, não estavam contentes com isso, apesar de não poderem ir tão longe como a minoria intransigente que optou sair da vida pública, por causa da sua objeção à posse do ofício sagrado pelos asmoneus. Josefo, ao falar do rompimento entre os fariseus e João Hircano, diz que o que ofendeu João mortalmente foi a proposta de que deveria contentar-se com a liderança política e militar e desistir do sumo sacerdócio.
Será que os fariseus, então, eram asideus? Parece que sim, ou, pelo menos, que surgiram dentro da comunidade dos asideus e devem ser mesmo considerados o principal sucessor dela. A designação “fariseus” deriva da raiz hebraica e aramaica que significa “separados”. A palavra grega pharisaioi evidentemente é uma transliteração do aramaico p’rîsayyâ, “os separados”. Muitos entendem que eles receberam esse nome, por terem se afastado da aliança com os asmoneus, mas talvez o sentido seja mais geral, indicando sua política de separação total de tudo o que poderia trazer impureza moral ou cerimonial. Essa separação era o outro lado da santidade a que eles se sentiam especialmente chamados. Isso é expresso em um comentário rabínico posterior sobre Levítico, que amplia a instrução: “Santos sereis, porque eu, o Senhor, vosso Deus, sou santo” (Lv 19.2): “Assim como eu sou santo, vocês também precisam ser santos; como eu estou separado (heb. parûs), vocês também precisam ser separados (heb. p’rûsîm)".
Os fariseus tomavam muito cuidado para guardar a lei do sábado e as restrições de alimentos, perpetuando assim os princípios dos judeus que foram martirizados por Antíoco IV, e sofreram torturas e morte para não apostatar nessas coisas. Davam escrupulosamente o dízimo do produto da terra – não apenas cereais, vinho e azeite, mas até as ervas da horta – e se recusavam a comer alimentos sujeitos ao dízimo, enquanto este não estivesse pago.
Em seu estudo da lei, eles elaboraram um conjunto de interpretações e aplicações que, com o tempo, adquiriu uma validade igual à da lei escrita, e sua origem, numa ficção jurídica, era atribuída a Moisés no monte Sinai, junto com a lei escrita. O propósito dessa lei oral – a “tradição dos anciãos”, como é chamada nos evangelhos (Mc 7.5) – era adaptar as prescrições antigas às situações diferentes, depois de tanto tempo, e impedir que fossem descartadas como obsoletas e impraticáveis. Havia diferentes escolas de interpretação entre os fariseus, mas todos concordavam com a necessidade aplicar a lei escrita nos termos da lei oral. Isso os distinguia dos seus principais opositores teológicos, os saduceus, que acreditavam (pelo menos em teoria) que a lei escrita deveria ser preservada e aplicada sem modificações, não importa o peso que sua imposição literal colocaria sobre as pessoas.
Não temos informações suficientes sobre a teologia dos saduceus, porque nenhum relato de primeira mão chegou até nós. O que sabemos apenas tem relação com os pontos em que diferiam dos fariseus. Sabemos, por exemplo, que, diferente dos fariseus, eles diziam que “não havia ressurreição, nem anjo, nem espíritos” (At 23.8). A fé na ressurreição, mantida pelos fariseus, é atestada ente os martirizados por Antíoco; ela deve ser distinguida da idéia (expressa, por exemplo, por Bem Siraque) de que o tipo mais desejável de imortalidade era a lembrança pela posteridade das virtudes de um homem bom, especialmente quando eram reproduzidas nos seus descendentes. Os saduceus podem muito bem ter considerado essa idéia mais coerente com os primeiros textos – apesar de alguns deles ficaram surpresos, certo dia, em Jerusalém, por volta do ano 30 d.C., ao ouvir um visitante da Galiléia deduzir a esperança da ressurreição da declaração divina feita a Moisés da sarça ardente. Quanto à descrença dos saduceus em anjos e demônios, o que eles rejeitavam, foi provavelmente o conceito de hierarquias opostas de espíritos bons e maus, cada uma encabeçada por sete arcanjos e arquidemônios conhecidos pelo nome. Eles podem ter reconhecido uma afinidade entre essas crenças dos fariseus e as da religião de Zoroastro; realmente, um estudioso chegou a sugerir que “fariseu” significava originalmente “persa” e que era uma designação pejorativa, inventada pelos saduceus, para seus opositores. Isso é improvável, mas pode-se imaginar que os saduceus, à guisa de sátira, reinterpretaram “fariseus” como “persas”. Os saduceus certamente pensavam que eles é que preservavam a religião dos antigos, e viam os fariseus como inovadores perigosos – modernistas, para ser claro.
Os fariseus ascenderam a uma posição de influência, quando Alexandre Janeu foi sucedido por sua viúva Salomé Alexandra; seu reinado de nove anos (76-67 a.C.) foi lembrado na tradição rabínica como uma pequena idade de ouro. Herodes lhes deu uma atenção respeitosa na primeira parte do seu reinado; ainda no ano 17 a.C., ele os liberou de um juramento de lealdade que exigia dos seus demais súditos. Pouco depois disso, porém, ele começou a se ressentir da teimosia deles, e, ao impor um novo juramento de lealdade em 7 a.C., a si mesmo e a Augusto, multou os fariseus - a grande maioria – que se recusaram a jurar. Quando, perto do fim da sua vida, alguns discípulos de fariseus, instigados por seus professores, derrubaram a grande águia dourada que ele colocara sobre a entrada do templo, ele se vingou de modo atroz.
Sob a administração romana, os fariseus estavam representados no Sinédrio. Apesar de eles serem minoria, segundo Josefo, sua influência sobre o povo era tal que a maioria dos saduceus e sumo sacerdote era obrigada a respeitar as opiniões deles. Muitos escribas, talvez a maioria – os expositores profissionais da lei e dos profetas – eram discípulos dos fariseus e difundiam as interpretações deles.
Os fariseus se organizavam em grupos locais. Esses grupos eram chamados de habûrah; cada membro de um habûrah era um haber dos outros membros. Josefo, que nos diz que desde os seus dezenove anos de idade ele organizou sua vida segundo as regras dos fariseus, estima seu número em mais ou menos 6.000.
Por causa da preocupação meticulosa deles com as leis de pureza e o dízimo, eles não conseguiam conviver facilmente com aqueles, mesmo entre os judeus que não insistiam tanto nesses particulares como eles. Isso dizia respeito à grande maioria da população judaica da Palestina, camponeses e artesãos, que não podiam dedicar tanto tempo ou interesse ao estudo dessas leis como os fariseus. Estes, por isso, costumavam falar com desprezo do “povo da terra”, como os chamavam, porque essas pessoas, na opinião deles, eram incapazes da verdadeira religiosidade. Por outro lado, os fariseus eram criticados, por serem muito frouxos em sua busca da santidade pelos sectários de Qumran que promoveram sua própria “separação”, a ponto de se isolar (para não dizer enclausurar) e, com Isaías 30.10 na cabeça, diziam que os fariseus “procuravam coisas aprazíveis” ou (como a frase também pode ser traduzida) “davam interpretações aprazíveis”.
Um a certa idéia de família caracterizava certamente o movimento dos fariseus, mas havia uma ampla variedade dentro dele – em parte conseqüência das diversas escolas de interpretação, e em parte de diferentes temperamentos e motivações. Uma passagem do Talmud, citada com freqüência, se bem que bastante posterior, faz distinção entre sete tipos de fariseus, dos quais apenas um, o fariseu que é fariseu por amor a Deus, recebe elogios sem restrições.
3 – O Farisaísmo nos Dias de Paulo
Nos primórdios da era cristã havia duas escolas principais de interpretação legal, fundadas respectivamente por Shammai e Hillel. À escola de Shammai tradicionalmente é atribuída uma interpretação mais rígida do que à escola de Hillel – não apenas na aplicação das leis individuais, mas também na postura, em relação à lei como um todo. Os discípulos de Shammai consideravam a quebra da lei (por ação ou omissão) uma quebra da lei como tal, enquanto os discípulos de Hillel ensinavam que o julgamento divino estava relacionado à preponderância do bem ou do mal, na vida inteira da pessoa.
Uma das afirmações mais bem conhecidas de Hillel é sua resposta a um homem que lhe pediu para resumir toda a lei no menor número possível de palavras. Hillel disse: “Aquilo que para você é detestável, não o faça aos outros, isso é toda a lei, todo o resto é comentário”. Essa citação da regra de ouro negativa como resumo da lei podia ser interpretada de maneiras que muitos fariseus teriam considerado perigosas. Mesmo se não foi essa a intenção de Hillel, pode ter encorajado alguém a argumentar, ao defrontar-se com um mandamento específico da lei, que este era obrigatório apenas até o ponto de evitar o sofrimento do próximo ou promovia o seu bem. Isso, segundo a opinião prevalente entre os rabinos, introduzia um critério subjetivo ilícito; era muito melhor que as pessoas, ao serem confrontadas com um mandamento da lei, obedecessem a ela simplesmente porque era um mandamento do Santo: não há porque perguntar por quê.
Que tipo de fariseu era Paulo? A pergunta não é fácil de responder. De acordo com Atos 22.3, ele foi instruído na escola de Gamaliel, e a tradição posterior faz de Gamaliel o sucessor de Hillel e líder da sua escola, e às vezes até seu filho ou neto. Mas as tradições mais antigas que refletem algumas recordações diretas do homem e seu ensino não estabelecem nenhum vínculo entre ele e a escola de Hillel. Em vez disso, falam de pessoas que pertenciam à escola de Gamaliel, como se ele tivesse fundado a sua própria.
Há certa dificuldade em distinguir as tradições sobre esse Gamaliel daquelas sobre um professor posterior com o mesmo nome (Gamaliel II, c. 100 d.C.), mas as tradições que pressupõe que o templo ainda estava de pé, certamente se referem ao Gamaliel anterior. Dizia-se que, “quando Rabban Gamaliel mais velho morreu, a glória da Tora cessou, e pureza e separação morreram” – o que quase equivale a dizer que ele foi o último dos verdadeiros fariseus, já que “separação” (heb. p’rîsût) vem da mesma raiz de “fariseus” e pode até ser traduzido por “farisaísmo”. Ente as regulamentações que lhe são atribuídas, está uma que liberaliza a lei do novo casamento após o divórcio.
Tanto nas tradições rabínicas como no Novo Testamento Gamaliel aparece como membro do Sinédrio. Lucas relata que, no estágio inicial da igreja em Jerusalém, os apóstolos foram acusados perante esse tribunal de desobedecer a sua orientação anterior de não ensinar publicamente no nome de Jesus. Quando alguns membros do tribunal queriam tomar medidas extremas contra eles, “um fariseu, chamado Gamaliel, mestre da lei, acatado por todo o povo” (At 5.34), lembrou seus colegas de outros movimentos no passado recente que pareciam ser perigosos por um tempo curto, mas logo entraram em colapso. E ele acrescentou (v. 38s):
"Agora, vos digo: dai de mão a estes homens, deixai-os; porque, se este conselho ou esta obra vem de homens, perecerá; mas, se é de Deus, não podereis destruí-los, para que não sejais, porventura, achados lutando contra Deus".
Isso certamente é doutrina típica dos fariseus. As pessoas podem desobedecer a Deus, mas sua vontade triunfará mesmo assim. A vontade do ser humano não é cerceada, mas o que ele quer é superado por Deus, quando realiza os seus propósitos. Nas palavras de um rabino posterior, o fabricante de sandálias Yohanan, “todo ajuntamento em prol do céu será confirmado, mas o que não é em prol do céu no fim não será confirmado”. Que Gamaliel seguiu a linha atribuída a ele por Lucas é o que devíamos esperar.
No entanto, se essa era a linha de Gamaliel, certamente não era a de Paulo. Na maioria das questões, por exemplo, na esperança da ressurreição e nos métodos de exegese bíblica, Paulo provavelmente foi um aluno apto e um seguidor fiel do seu professor. Até se chegou a pensar que um aluno de Gamaliel do qual não se diz o nome, mas que apresentou “descaramento em questões de estudo” e tentou refutar seu professor, era ninguém menos que Paulo. Se esse é o caso (o que é bastante incerto), então a tradição reflete a desaprovação com o posterior abandono do caminho rabínico por Paulo; não preserva uma recordação da conduta de Paulo, enquanto esteve aos pés de Gamaliel. Em um aspecto, porém, Paulo desviou-se do exemplo do seu mestre: ele repudiou o a idéia de que uma política de contemporização era a mais adequada em relação aos discípulos de Jesus. Em sua cabeça, esse novo movimento constituía uma ameaça mais mortal a tudo o que ele aprendera a valorizar do que Gamaliel parecia capaz de entender. Além disso, o temperamento de Paulo parece ter sido bem diferente do de Gamaliel: em contraste com a paciência e tolerância de estadista de Gamaliel, Paulo era caracterizado, em suas próprias palavras, por uma superabundância de zelo – que, realmente, ele nunca perdeu de todo.
Como o objeto do seu zelo eram as tradições dos ancestrais – a antiga lei de Israel e sua interpretação como era ensinada na escola de Gamaliel – não devemos ficar surpresos de saber que ele estava insatisfeito com a idéia dos seguidores de Hillel de que um mera preponderância do bem sobre o mal, na vida de alguém, era suficiente para lhe conseguir um veredito favorável, no dia do julgamento. Nesse ponto, pelo menos, ele parece ter se inclinado mais para a posição dos seguidores de Shammai de que a lei tinha de ser obedecida em sua totalidade. Que essa era a postura de Paulo está implícito mais tarde, quando ele diz aos seus convertidos na Galácia, que estavam sendo pressionados a adotar certas exigências legais do judaísmo, que eles não podiam pensar que, se escolhessem essa maneira de ser aceitos por Deus, podiam escolher os que quisessem entre os mandamentos divinos: “Testifico a todo homem que se deixa circuncidar, que está obrigado a guardar toda a lei” (Gl 5.3). Essa atitude em relação à lei determinou a atitude hostil de Paulo em relação aos seguidores de Jesus e seu ensino.
O próximo artigo desta série é QUANDO VEIO A PLENITUDE DO TEMPO
RETORNAR AO ÍNDICE DE PAULO - SUA VIDA, SUAS CARTAS E SUA TEOLOGIA